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Como homem do mar e da ria, pisando chão plano, sempre sonhei, desde menino, com a magia da serra. Anos e anos olhei para as silhuetas das montanhas, bem visíveis em dias claros, com sonhos de um dia sentir ao vivo a paz dos montes, rodeado do silêncio e da verdura da floresta virgem. Já crescido, recordo os meus primeiros contactos com a serra e senti muitas vezes, ao longo da vida, o sortilégio da montanha, onde vou quando posso. E o mais curioso é que, quando a visito, novas sensações me invadem a ponto de alimentar, nem sei porquê, projetos inviáveis de me fixar nos montes de vidas mais calmas e da tranquilidade absoluta que me aproximam de modo diferente do espiritual.
Por 24 horas, fui mais uma vez ao Caramulo, onde há recantos aparentemente nunca vistos. Recantos que vamos descobrindo e redescobrindo em cada esquina, sobretudo em aldeias quase despovoadas, que estão carregados de história e de estórias que são, sem dúvida, riqueza que não pode continuar ignorada.
Dia de chuva, ora miudinha ora pesada e agressiva, com nuvens negras a indiciarem o Inverno que oficialmente ainda vem longe, as 24 horas que passei na serra proporcionaram-me uma paz interior que foi saboroso viver. Da janela da casa que me acolheu, fui contemplando a floresta que os fogos de Verão, felizmente, não têm mutilado nem nunca, ao que soube, transformaram em montanha de cadáveres hirtos e ressequidos. Nem carros acelerando e chiando nas cursas, que as há por ali, nem cães que ladram e gente que grita, nem altifalantes que anunciam aos berros arranhados a próxima festa, nem aviões em exercícios mecânicos e enfadonhos, nada perturbava o sossego da montanha que vivia, tranquilamente, a sua existência milenar.
Dei comigo a prescindir da música armazenada para ouvir o silêncio apenas perturbado, docemente, pela chuva miudinha que teimava em cair, senti o prazer de conversar ignorando a caixa mágica que mudou e moldou o mundo, deliciei-me com a sesta reconfortante, apreciei um conto da escritora Flannery O’Connor que me deixou emocionado…
Passeei por ruas tortuosas despidas de gente, olhei com curiosidade para a toponímia da terra, parei na fonte que corria ininterruptamente, decerto há séculos, admirei a vegetação espontânea que tudo cobre, ouvi estórias de gente que trabalhou e que sofreu, aprendendo na vida a vencer obstáculos e a ser feliz.
As nuvens acompanharam-me neste andar e neste estar, alimentando, com as suas correrias mágicas, ao sabor do vento, os meus sonhos, que nunca me abandonaram, de um dia correr mundo, como elas...
E tudo isto, e muito mais, graças a bons amigos que sabem muito dos meus sonhos e dos meus gostos.
Fernando Martins
Nota: Escrito em outubro de 2006