E o presépio vai ser guardado...

O DESARMAR DO PRESÉPIO  - JÚLIO DINIS



Em criança arrasavam-se-me de água os olhos quando assistia ao desfazer do presépio que, em honra do Menino-Deus, se armava em minha casa pelo Natal. Cerrava-se-me o coração de melancolia, ao ver guardar outra vez na arca — e por um ano! — o Menino, Nossa Senhora, S. José, os grupos dos pastores, a vaca, o jumento, os três Reis, os anjos e todos os mais acessórios do pitoresco santuário, diante do qual, nesses quinze dias, se rezava a coroa em família, e se cantavam as loas da ocasião! 
Amargo dia de Reis, último desta abençoada quinzena, já te não via assomar sem que se me enevoassem aquelas puras alegrias infantis. Que não encontrásseis mais estorvos pelo caminho, venerandos Magos! 
Que aquela milagrosa estrela que vos trouxe a Belém, vos não fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! 
Fatal 6 de Janeiro! Com o seu anoitecer, anoitecia-me o coração: voltava a vida normal, voltavam os bancos das aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia sobretudo tão associada à férula do mestre-escola! e — o que era pior que o mais — acabava aquela santa comunidade, em que durante quinze dias vira a família; o lar doméstico já não ofereceria o alegre tumulto e desordem, em que velhos e crianças tomavam parte, esse ruído e confusão que tão fundo calava no coração de todos. 
A solenidade que nos reunira sob o mesmo tecto, que nos fizera viver a mesma vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos às claras na despedida; mas suspeitávamos que as nossas lágrimas tinham companheiras envergonhadas. Quantas vezes surpreendíamos segredos de comoção, que nos redobrava o choro! Suspeitava-o eu então, mas acredito-o agora que, apesar de na idade em que a lei me autoriza a não me considerar criança, ainda não sou superior a cenas daquelas. 

Júlio Dinis
In Serões da Província

NOTA: Depois dos Reis, o nosso Menino Jesus volta para o seu lugar num espaço digno, talvez olhando para quem está ou chega à nossa casa. Afinal, continua nos nossos quotidianos de cristãos ligados indelevelmente às nossas tradições e convicções. A roda da vida é assim. Qualquer dia a Páscoa, a principal festa dos que acreditam na Boa Nova de Jesus Cristo. E o Natal virá lá para o fim do ano.
Podia escrever algo relacionado com os Reis e com o desfazer do presépio, mas hoje optei por um texto de Júlio Dinis, um escritor que muito me entusiasmou na minha adolescência. Subscrevo, por isso, quanto ele disse. 

Sem comentários:

Este meu blogue ficará disponível apenas para consulta

Por razões compreensíveis e próprias da minha idade, este meu blogue vai continuar disponível para consulta, mas não será atualizado. Contin...

Mensagens populares