A NOSSA GENTE — Fernanda Matias

Fernanda Matias e Maria Helena 

Conheço a Fernanda desde que me conheço. Quase vizinhos, não podia deixar de ser assim. Também sempre estão nas minhas memórias de infância a sua mãe, a Tia Célia, de seu nome completo Carolina Célia Matias, a sua avó Joana e os seus irmãos: Ezequiel, Aldina e o Manuel. Este era para nós, colegas da escola da Tia Zefa, entre a sua e a nossa casa, o “Necas da Ti Célia”. Outros diziam “Nequitas da Ti Célia”.
Ao falar da Fernanda, não podia deixar de lado a sua avó Joana, que minha mãe e outras mulheres da terra, muitas sem dúvida, tratavam com deferência, num misto de gratidão e admiração. Um dia a minha mãe esclareceu-me: Foi a Dona Joaninha que te ajudou a vir ao mundo. Era, como diziam alguns, uma curiosa que ajudava nos partos. Eu garanto, pelo que ouvi, que a Dona Joaninha era uma afamada parteira, com um saber de experiência feito. Daí o respeito com que a tratavam.
Foi na escola que reparei na forma de vestir da Tia Célia: Luto carregado dizia alguma coisa. E foi a minha mãe, Rosita Facica, que me elucidou. O marido, José dos Santos Matias, de 32 ano, tinha morrido no afundamento do lugre Maria da Glória, que fora torpedeado por um submarino alemão, no dia 5 de junho de 1942. Outros quase vizinhos também morreram e as suas mulheres nunca mais se casaram nem praticamente deixaram o luto. Refiro-me ao Domingos Sarabando e ao Manuel Gafanhão.
A Fernanda mostra uma postura que inspira confiança e vivacidade. Fala com sorriso permanente animado imensas vezes por gargalhadas contagiantes. Dir-se-ia ter a sina da boa disposição para si e para todos. Está-lhe no sangue e na alma a generosidade e a abertura a uma sociedade solidária de matriz cristã, herdada no seio familiar e na Ação Católica, mais concretamente no JOCF (Juventude Operária Católica Feminina), um organismo que teve por fundador um padre belga, Joseph Cardjin, em 1923. Sendo filho de uma família operária, conheceu de perto a forma nada cristã como trabalhadores viam espezinhados os seus direitos por patrões sem escrúpulos. Por isso, ofereceu toda a vida para lutar, incansavelmente, pela defesa e promoção dos trabalhadores, apostando na dignificação do trabalho, seguindo o método de Ver, Julgar e Agir, que deixou escola em muitíssima gente, em Portugal e no mundo.
De tal forma a Fernanda se sentiu tocada por este movimento e pelo seu fundador, que não resistiu em peregrinar até ao seu túmulo com amigos que, imbuídos pela  mesma paixão, jamais deixaram de venerar Joseph Cardjin, elevado, nos últimos anos de vida, à dignidade de Cardeal. 
A ideia de peregrinar ao túmulo do cardeal Joseph Cardijn, fundador da JOC e da JOCF, situado numa simples e humilde capela da igreja de Notre-Dame, em Laeken, na Bélgica, deixou a Fernanda emocionada. Concretizou esse sonho em 18 de novembro de 2013. Contou-me, em entrevista que concedeu, que teve «uma grande alegria» e que chorou. «Nem parecia eu», disse. E acrescentou: «Foi uma grande alegria estar junto do túmulo, foi uma graça muito grande e continuo a pensar que sou muito rica de coisas muito boas; e pedi a Cardijn que intercedesse por mim e por todos os jocistas junto de Deus.»
Referindo-se a sua mãe, com quem cheguei a falar diversas vezes, disse que era considerada pelas vizinhas e amigas, «uma pessoa rica, não pelo dinheiro que não tinha, mas pelo respeito com que era tratada por toda a gente. Corroboro eu o que disse a Fernanda, porque sempre vi na tia Carolina Célia qualidades de serenidade, seriedade, respeito por todos e de trabalho incansável para educar os quatro filhos.
Não tendo posses para os filhos estudarem para além do Ensino Primário, esforçou-se ao máximo para todos aprenderem uma profissão e viverem honestamente. Na altura, a tia Célia orientou-se pelo que era tradicional para as famílias mais modestas. As meninas, depois da 3.ª classe, iam aprender costura; os rapazes, depois da 4.ª classe, procuravam uma profissão de que gostassem. Os irmãos da Fernanda ingressaram em oficinas.
A Fernanda aprendeu costura, trabalhou numa seca do bacalhau, numa creche da EPA (Empresa de Pesca de Aveiro) e depois foi admitida na Obra da Providência, onde assumiu diversas tarefas.
Seria injusto se não sublinhasse a sua capacidade de adaptação a várias funções, mas ainda a sua conhecida generosidade, faceta com que contagiou muita gente. Certo dia, confirmou que uma vizinha, viúva, vivia só. Limitada nas forças pelo peso da idade teve a sorte de beneficiar da atenção da Fernanda, que a ajudava no que podia. E daí a pouco estava a sensibilizar a direção da Obra da Providência para autorizar a prestação de cuidados à sua vizinha Maria. Depois da sua vizinha, outros idosos surgiram. E assim começou o Apoio Domiciliário a Idosos na Gafanha da Nazaré.

Fernando Martins

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