quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Tinha saudade desta escadaria





Tinha saudades desta escadaria. Por ela, subi até ao “Correio do Vouga” imensas vezes. Desci outras tantas. De uma vez, corri até ao cimo e desci na mesma velocidade. Momentos depois, sofri um enfarte. Estávamos em 8 dezembro de 2006. Depois, passei a olhar para ela com certo temor. Talvez infundado, mas enfim. Hoje, subi e desci a pensar nisso. Fui com calma, agarrado ao corrimão. Tudo bem. Apenas a chuva torrencial que me molhou à chegada me incomodou. 
Quando descia, ouvi o sinal sonoro que foi montado há anos para avisar que estava a chegar gente. Ao subir, não dei por ele. 
Bons tempos em que nem notava os anos a passar, por gostar do que fazia. Quem corre por gosta não cansa, diz o ditado. E é verdade. 
Os meus tempos do jornalismo abriram-me mais ao mundo em que estamos. Ao jornal, se chegavam notícias que formavam e informavam pela positiva, também não faltavam as que refletiam mágoas, tristezas, incompreensões, desgostos. E se as primeiras eram bem-vindas, as outras exigiam atenção, que do negativo podemos e devemos descobrir a vertente que tranquiliza. 
Já lá vão 14 anos, mas soube-me bem recordar o que antes vivi no jornal diocesano, levado hoje por esta escadaria, ao som do aviso sonoro que alerta quem está para gente que vem a caminho. E de passagem, permitam-me que agradeça a atenção e o carinho com que fui recebido pela Teresa e pelo Jorge, amigos de há muito. 

Fernando Martins

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Os sonhos e as fantasias continuarão



Os espaços comerciais fazem publicidade aos seus produtos, acentuadamente nas quadras festivas. Servem-se das técnicas conhecidas e exploram outras, à medida das suas legítimas conveniências. E há quem bata na mesma tecla por se saber, antecipadamente, que resulta. Hoje, numa superfície comercial, lá estavam, já, a árvore de natal e os anúncios da chegada do Pai Natal, carregado de prendas, julgo eu, para as crianças. Tudo certo. 
Acontece que eu fui educado e preparado para a festa do Menino Jesus, altura em que havia prendas, simples, para todos. A estória do Menino Jesus, que na minha primeira infância vinha sorrateiro deitar as prendas nos sapatos que ficavam na lareira, deixou-me cedo. A minha saudosa mãe foi-me encaminhando, pedagogicamente (sem nunca ter estudado tal coisa),  para a verdade: “Ao Menino Jesus apenas pedimos que nos dê saúde, a mim e ao pai, para podermos comprar o que nos faz falta.» E assim interiorizei… 
O Pai Natal foi inventado pelo comércio e ninguém morre por isso. As crianças (e até os mais velhos) precisam da fantasia, do sonho, de fadas e de princesas, de tudo, afinal, que possa enriquecer a imaginação, onde o belo e a bondade tenham lugar cativo. Todas as crianças hão de um dia, quando tiverem idade para isso, cair na realidade. E terão então muito tempo para acertarem o passo com este mundo tão cheio de contrastes. Nessa altura tudo se esvai, mas os sonhos e as fantasias continuarão. 

Fernando Martins

sábado, 24 de novembro de 2018

Prior Sardo, fundador e “rei”

Estátua do Prior Sardo 



Em artigo publicado em «O Ilhavense», no dia 1 de dezembro de 1958, o Padre Rezende afirma que o Prior Sardo «dava ordens e directrizes em que era obedecido sem restrições ou quaisquer objecções, criando por esta forma ambiente favorável à criação da freguesia, que ele desde há muito trazia em mente». Noutro passo do seu artigo, garante que o Prior Sardo era considerado «o rei daquelas terras», sendo o primeiro a entender, «diante de Deus e dos homens, que devia interferir oportunamente com a sua autorizada acção e eficaz campanha na independência desejada». Assim, «reconheceu a necessidade de ingressar nos segredos da política dominante e agir dentro dela, como era costume, naqueles tempos, qualquer entidade que solicitasse uma mercê». 

Fernando Martins 
in “Gafanha da Nazaré, 
100 anos de vida”, 
pág. 80-81.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Aveiro: Inauguração das Eclusas e Comportas

1985 
23 de novembro 


«Foi inaugurado em Aveiro o sistema de eclusas e comportas, de que resultou a manutenção do nível elevado da água nos canais citadinos da Ria» (Correio do Vouga e Litoral, 22 e 29-11-1985) 

“Calendário Histórico de Aveiro” 
de António Christo 
e João Gonçalves Gaspar 


NOTA: Quem hoje aprecia os canais da Ria de Aveiro, sobretudo o Canal Central, nem imagina a importância daquela inauguração. Com maré baixa,  a lama, carregada de lixo doméstico e outro, lançava um cheiro nauseabundo insuportável. O Canal Central era, realmente a maior lixeira das redondezas. Desde a inauguração das eclusas e comportas, os canais que atravessam a cidade passaram a ser um luxo e um motivo turístico.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

MEDITAÇÃO de Bernardo Santareno

Gostei de reler


«Se para lá do leito que limita este mar profundo, houvesse um outro mar ainda mais fundo e depois deste um terceiro e outro e outro…
se através de todos estes mares, eu fosse descendo em vertigem…
se assim descendo, me fosse esquecendo de ideias, imagens, desejos e afectos…
se depois do último mar, de mim restasse somente um simples ponto luminoso, brilhante num túnel de treva densa…
se eu vencesse a angústia, o terror, o desértico vazio deste túnel negro…
se eu suportasse o silêncio terrível desta noite cerrada e sem estrelas…:
Então, talvez eu pressentisse a madrugada que se evola do sorriso de Deus…
talvez eu ouvisse a Música inefável, oculta para lá do humano silêncio…
talvez eu fosse penetrado pela alegria de Deus, pela simples claridade de Deus: tão pura e tão simples, que nenhuma das palavras que os homens sabem a pode conter!...
Só então, ultrapassados abismos de mares sucessivos, perdido das minhas mãos e do fruto que as chama, cortadas as raízes da minha voz de sangue, separados os meus gestos das aves que os voam…
só então, aniquilado, perdido de mim, um simples ponto luminoso na treva mais absoluta…
só então, verei a luz virgem, oculta no riso de Deus!»

In “Nos mares do fim do mundo”, 
de Bernardo Santareno

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Teatro Aveirense foi reaberto há 69 anos

Um espaço que muito honra 
a cidade e as suas gentes 



Há espaços emblemáticos na cidade de Aveiro. O Teatro Aveirense é um deles. Enche a memória dos aveirenses e de quantos por ali passaram ao longo da vida. 
No dia de hoje, em 1949, há precisamente 69 anos, foi reaberto, após dois anos de profundas obras de modernização, conforme lembra o Calendário Histórico de Aveiro. Nesse dia, foi apresentada a revista “Esquimó Fresquinho” pela Companhia de Revistas do Teatro Maria Vitória. 
Entrar no Teatro Aveirense, só por si, é revisitar a sua história e lembrar momentos agradáveis que se não perdem com o tempo. É evocar cultura, arte, artistas, cerimónias cívicas, pessoas ilustres, enfim, tudo o que nos faz recordar um passado que precisa de ter continuidade, agora com novas formas. O Teatro Aveirense aí está, presentemente, como espaço que muito honra a cidade e as suas gentes. 

F. M. 

domingo, 18 de novembro de 2018

O que esquecemos e o que aprendemos

Blocos de cimento

Há tempos, referi-me aos blocos de cimento que ilustram esta página, chamando-lhe pedras. Foi o que saiu naquele momento por me parecer mais poético. Eu sabia que não eram pedras, mas blocos com uma configuração especial ou apropriada para suster o impacto das ondas. 
Contudo, um amigo, o Carlos Amaro, sempre atento ao que digo e escrevo, teve o cuidado de me corrigir, explicando-me que se tratava de blocos, denominados “pé de galinha”, inventados e utilizados na Holanda com sucesso. Dá para perceber, portanto, que uma invenção, por mais simples que seja, pode produzir resultados gratificantes. Estamos sempre a aprender.

A brancura que cai dos céus

Recordando

Serra da Estrela 


A beira-mar tem os seus encantos: os horizontes largos dão-nos margem aos sonhos. Há décadas, um amigo meu do interior do país, de passagem pela Gafanha da Nazaré, quedava-se tardes inteiras sentado com os olhos fitos na linha longínqua que definia o oceano. Nunca tinha visto o mar, que não havia posses para passear até ao litoral. Nem sequer havia televisão na aldeia onde vivia. 
Espantado com tanta obsessão pelo nosso mar, perguntei-lhe, como quem não quer a coisa, por que razão por ali ficava tanto tempo. Respondeu-me, com alguma candura, “que esperava ver, ao longe, sinais de terra”. 
Vem isto a propósito dos terríficas mas simultaneamente belas paisagens nevadas, que o frio tem provocado por algumas zonas do país. Terríficas porque causam transtornos e podem mesmo meter medo a quem viaja. Belas porque nos mostram imagens raras como aquelas que os nossos olhos contemplam via televisão. 
Eu, que nasci ao som do mar e com o cheiro da maresia a entrar-me por todos os poros, nunca pude apreciar ao vivo, em plena serra, o espetáculo da neve a cair e a pintar de branco puro montes e vales, florestas e pessoas. Apenas visitei uma vez a Serra da Estrela, e neve, a sério, por aqui, nunca. Apenas um dia, na escola onde lecionei, há muitos anos, caíram uns farrapitos de neve que mal cobriram o recreio. E todos, professores, empregada e alunos, deixaram livros e cadernos, problemas e leituras para se deslumbrarem com a pureza que naquele dia nos levou a sorrir com gosto. Pudesse eu sentir o palpitar de um nevão e talvez ficasse como o meu amigo, extasiado, a apreciar a Natureza com tudo o que ela tem de bonito e de raro, em dias purificados pela brancura que cai dos céus. 

Fernando Martins

Nota: Texto publicado em 11 de janeiro de 2010.

sábado, 17 de novembro de 2018

Rossio: Crianças e Moliceiros




Ameaça de chuva com vento e frio, ao entardecer, no Rossio, Aveiro, percebe-se bem a ausência das crianças. Uma pomba estaria à espera delas. Em vão. 
No canal, ao lado, circulavam moliceiros com turistas. Quando falamos de moliceiros, associamos de imediato o moliço que estrumava terras de lavoura. Tempos que já não voltam. E os moliceiros, que enxameavam a laguna aveirense, estariam condenados a morte lenta, sem honra nem glória. Foram salvos pelo turismo, mas a sua história de vida, de séculos, nunca poderá ser esquecida.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

A paciência

Pescadores e acompanhantes
Pescadores em hora de descanso?

Aprecio a paciência, nas suas múltiplas expressões, porque traduz qualidades que não possuo em grau elevado. Mas sei reconhecer que a paciência pode trazer aos seus cultores prazeres inesperados. Desde logo, os pescadores desportivos, que são capazes de estar horas e horas à espera que o peixe pique (vulgo ensaie roubar o isco), correndo o risco de ficar preso no anzol. Do mesmo modo, sei que os fotógrafos de animais raros ou fugidios, que temem o homem como o diabo a cruz, que são capazes de ficar à espera, pacientemente, noites inteiras, que eles surjam entre a folhagem das florestas ou nos interstícios das fragas serranas. Mas ainda os fotógrafos que buscam um pôr do sol único, enquadrado por panoramas fascinantes, esperando dias e dias que a oportunidade o surpreenda. 
Hoje fiquei-me pelos pescadores que, na Praia da Barra, durante a tarde abençoada por um sol acalentador, tentaram apanhar uns peixinhos para o jantar. Eram vários, mas não vi que algum pescasse coisa de jeito. E lá ficaram, serenamente, pensando que há dias e dias. Amanhã será melhor, admitirão todos. E eu acredito.

Fernando Martins

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Tenho andado assim


Tenho andado assim. Será da chuva? Será do vento? Será do frio? Das gentes não será certamente. Será talvez da melancolia, que, sem dar por ela, me deixa cabisbaixo e pensativo. Seja disto ou aquilo, uma coisa é certa: vou pôr de lado o tom magoado da pedra chorosa. A alegria tem de prevalecer. 

Gosto dos moliceiros

Gosto dos moliceiros que outrora dominavam os canais lagunares. E quando navegavam à vela, quase deitados de lado sobre a tranquilidade da ria, dominados por homens do leme com o saber de experiência feito, então a paisagem tornava-se deslumbrante. 
Hoje, arredados que foram das fainas da apanha do moliço, sobrevivem na área do turismo, não só para forasteiros darem umas voltinhas, mas também para nós, os mais idosos, podermos alimentar as nossas saudades de tempos que não podem voltar. 
Boa semana para todos, com ou sem moliceiros à vista. 

Fernando Martins

domingo, 11 de novembro de 2018

Imagens do Jardim Oudinot


 Postais ilustrados  
para memória futura
Jardim Oudinot - sala de visitas da nossa terra


O farol no outro lado do canal de Mira

Ria com farol à vista


Igreja matriz vista do Oudinot

Portas d´Água 

O prazer da pesca 

Reflexos do sol na ria 

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Memórias da “Praia do Farol” (3)


Quando eu era miúdo e jovem, o São João era festejado na Praia do Farol, com muita devoção. Era uma festa diferente das que hoje se fazem, quando se fazem. Presentemente, quando se fala do São João da Barra, fala-se de uma sardinhada com boroa e bem regada, com música gravada ou de conjunto musical. E fica-se por aí, mais ou menos. Mas antigamente era muito diferente. 
À minha memória vêm logo os romeiros que a pé, de bicicleta ou de carro se deslocavam para junto da capelinha do São João, vindos de perto e de longe, sendo muito frequente a oferta de cravos  (flores) ao santo milagreiro que tirava os cravos ou verrugas dos dedos das mãos. Esta crença vem de tempos que não posso precisar, mas sei que perdurou pelos tempos fora, até que passou de moda. Confesso que não sei se esta fé nos milagres atribuídos a São João Batista (ou por seu intermédio, junto de Deus) existia noutras terras. 
Nos meus tempos de menino e moço, porém, era certo e sabido que muita gente tinha os tais cravos ou verrugas sobretudo nos dedos das mãos, o que não era nada agradável, diga-se de passagem. Não sei se por falta de higiene se por outro motivo. Contudo, os cravos ou verrugas acabavam por desaparecer tão depressa como depressa apareciam. E neste vaivém os cravos incomodavam o pessoal, sobretudo os jovens. E daí as promessas. 
Penso que os médicos terão elucidado os crentes e neste ínterim começaram a escassear as promessas. E acabaram os cravos (flores) oferecidos ao nosso São João da Barra. Mas é natural que um ou outro devoto ainda entre na pequena igreja do São João, ali bem perto do Farol, para ofertar cravos ao parente de Jesus Cristo, o chamado precursor do nosso Salvador. 

Fernando Martins 

Nota: Sobre a chamada capela de São João da Barra, farei uma nota brevemente. 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Cores da Torreira

Foto registada há sete anos

As cores da Torreira estão sempre na minha memória. Há anos, a família tinha uma indisfarçável atração pela praia da Torreira, no concelho da Murtosa. Íamos lá com frequência, mas no verão as visitas eram mais frequentes. E daí me ficaram imagens que ainda hoje ocupam um lugar especial na minha memória. Terra por onde passe, é certo e sabido que sempre haverá algo que me prenda ao que vi e senti.
Da Torreira, ficaram-me as cores do céu e da ria, mas também os barcos dos pescadores e os olhares das pessoas, pobres ou ricas. Ainda o cheiro da maré que sobe e desce, ciclicamente, há muitos séculos. Um dia  estive com um amigo muito ligado àquela praia e um pouco dela falámos. Tanto bastou para esta simples recordação que me há de levar um dia destes até lá. Que o tempo melhore e me permita viajar para confirmar as cores, os ares e os cheiros da maresia. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Ruas e ruelas, becos e avenidas da nossa terra


As nossas terras estão cheias de ruas e ruelas, becos e praças, avenidas e alamedas que se cruzam e entrecruzam, bem alinhadas, umas, ou ao deus-dará, outras. As razões são as mais diversas. Todas ou quase todas foram batizadas com nomes que, de alguma forma, justificaram a escolha das autarquias, responsáveis por essa tarefa. 
Temos de reconhecer, porém, que nem sempre será fácil conhecer e até aceitar os nomes das personalidades selecionadas para darem o nome a esses espaços públicos de utilização diária pelas pessoas e veículos. Daí a minha ideia de convidar os meus leitores a escreverem, cada um sobre a sua rua, ruela, praça, avenida ou alameda.
Fico à espera. 

Fernando Martins

A minha rua: Rua Almeida Garrett

A minha rua (foto do meu arquivo). A minha casa é a do lado direito, com grades e flores a desejarem saltar para a rua

Moro na Rua Almeida Garrett. Já foi ou ainda é travessa Almeida Garrett. Também foi Almeida Garret e Almeida Garrett, ao mesmo tempo. Com erro só com um “t”. De qualquer modo, e apesar do erro que engana quem nunca ouviu falar ou escreveu corretamente o nome de um grande vulto das nossas letras, gosto dela, porque a vi nascer. É uma rua direita e tranquila. Todos os vizinhos são amigos e gente muito boa.
Quando eu era menino, era um caminho de areia por onde circulavam os carros de vacas carregados de esterco ou de moliço a caminho das terras de cultura. No regresso vinham com erva, milho, feijões e batatas. As alfaias agrícolas ocupavam o seu espaço. E ainda havia lugar sentado para quem ia ou vinha dos campos. O gado estava tão treinado que até conhecia, sem qualquer indicação do condutor, os caminhos das terras e de casa.
O rodado dos carros tornara duro o caminho. Mas no inverno a água da chuva complicava a vida às pessoas e aos animais. Ao lado do caminho, do nascente, havia uma vala-mestra. Chama-se vala-mestra porque recebia águas pluviais de outras valas mais pequenas.
A vala-mestra encarregava-se de levar as águas para a ria. Nos invernos mais chuvosos a vala parecia um rio, tal a força da corrente. E nas marés-cheias, a vala transbordava e tudo ficava alagado. Cheguei a não poder sair de casa. Quando a maré descia, as coisas melhoravam e voltavam à normalidade. Por vezes ficavam enormes charcos que prejudicavam as culturas. O povo até dizia que as batatas plantadas tinham morrido afogadas.
Depois o caminho foi ensaibrado e somente após o 25 de Abril a rua viu o alcatrão, em data que não posso precisar. Mais tarde, na vala-mestra foram aplicadas manilhas e, ao contrário do que se podia esperar, não mais houve alagamentos significativos.
Com a história da minha rua, abreviada, como não podia deixar de ser, já me esquecia de falar de um dos grandes vultos das letras portuguesas, que viveu entre 1799 e 1854. Foi um escritor e homem público multifacetado: poeta, dramaturgo Par do Reino, ministro. Foi um romântico e o grande reformador do teatro português. Quem há por aí que não conheça Frei Luís de Sousa, Folhas Caídas e Viagens na Minha Terra? E quem de Ílhavo, e não só, desconhece, nesta última obra, o célebre debate que pôs frente a frente um ílhavo e um ribatejano, cada um apresentando-se como o mais valente? E não foi o ílhavo que levou a melhor, com a sua coragem frente ao mar, contra o ribatejano frente ao toiro?

Fernando Martins

domingo, 4 de novembro de 2018

Uma estória de amor

Há sempre tempo para tudo 

Foto da rede global

Acompanhei, há dias, uma jovem que foi tratar de um idoso meio abandonado e esquecido pela família e pela comunidade que durante décadas o reconheceu como um dos seus membros. 
Prostrado no leito, semiparalítico, mas lúcido, falava com desenvoltura sem lamentar a triste situação. Porém, desde a nossa chegada lhe notei uma vontade férrea de viver e uma ânsia incontida de falar, de trocar impressões. 
Enquanto lhe preparavam o lanche e cuidavam da higiene pessoal, a sua boca não se calava, ora recordando acontecimentos passados há muito, ora dando explicações nem sempre pedidas. 
Depois, sem pressas, lá ia engolindo as sopas que a jovem, carinhosamente, e sem forçar, lhe ia metendo na boca enquanto entre palavras e sorrisos lhe mostrava um pouco de amor. E chegou a hora da despedida até ao dia seguinte para a repetição nada monótona, afinal, do mesmo ritual. E se nesse dia da Festa de Nossa Senhora da Nazaré era preciso fazer o trabalho um pouco mais depressa porque as colegas estavam à espera, a verdade é que, perante o idoso, tudo foi esquecido e dali saiu mais tarde do que nunca. 
— Afinal esqueceste-te da festa, ó Isabel — adiantei. 
— Deixe lá, senhor professor, ainda vou a tempo! Pois é, Isabéis. Há sempre tempo para tudo. Até para amar, se quisermos! 

Fernando Martins 

“Timoneiro”, setembro de 1988

Recordando Ascêncio de Freitas

Um escritor gafanhão 
Ascêncio de Freitas


«O capitão Armando Vieira, do mesmo modo familiar com que o tinha recebido pela primeira vez logo após a chegada, fez entrar o amigo da juventude pela porta da cozinha, com as manifestações de alegria de quem acolhia em sua casa alguém que tivesse acabado de regressar, ileso, de uma batalha perdida 
e a cozinha estava inundada de um odor forte, saído de algo que estava a cozinhar, que fez recordar ao tio Florêncio a caldeirada de bacalhau 
não obstante ele pensou que não poderia adivinhar de forma tão simples e imediata que seria esse “o jantar gafanhão” que lhe tinha sido prometido, pois a caldeirada não poderia nunca ser considerada um prato gafanhão, nem tão-pouco apenas português
— Estás a lembrar-te de alguma coisa conhecida neste cheirinho que está aqui na cozinha, não estás, sócio? 
mas eu aposto singelo contra dobrado em como não adivinhas o que a Adélia tem ali a cozinhar
— Guiado pelo cheiro, eu apostaria que se trata de caldeirada de bacalhau 
mas ao mesmo tempo qualquer coisa me diz que perderia a aposta, porque este aroma que anda no ar não é exactamente igual ao da caldeirada
perderia… seguramente
porque depois de teres prometido um jantar gafanhão, seria falta de imaginação apresentares-me para comer uma banal caldeirada de bacalhau 
embora seja coisa que não como há muitíssimo tempo
só que ninguém poderá dizer que se trata de um prato gafanhão 
os bascos e os galegos também a fazem
— Deixa-te de divagações e vem dar uma espreitadela
disse o capitão Armando Vieira
aproximou-se do fogão, retirou a tampa do tacho e uma intensa nuvem de vapor subiu no ar
depois de a deixar dissipar, o capitão Vieira fechou os olhos e aproximou o rosto do recipiente, de onde saía, junto com a branda fumarada, o som de um suave borbulhar
— Oh, assim estragas a surpresa, Armando
protestou Adélia
mas ele aspirava o vapor que saía do tacho e comentava:
— Hum, este cheiro a salgado entra-me no nariz e trepa-me até à alma
vem cheirar, vem cheirar este perfume que nos lembra o mar e é como se fossem as mãos dos anjos a acariciar o que há de melhor dentro de nós
ah, e como formosa nos parece a vida saboreando estes petiscos
melhor do que isto só lagosta suada ou bacalhau á Freitas
o tio Florêncio aproximou-se dele e espreitou para dentro do tacho
aspirou também o cheiro da comida
— Então que tal?
— Não estou a ver o que possa ser
cheira a bacalhau… mas ao mesmo tempo há qualquer coisa de diferente neste cheiro
— São sames, sócio, são sames, que já não deves comer há muito tempo
— Sames?
caramba, há mais de trinta anos que não me lembrava sequer dessa estranha palavra, quanto mais comê-los 
— Sim senhor, um guisadinho de sames de bacalhau, bem à gafanhoa é ou não é?»

Excerto do capítulo oitavo
do romance “Ai, Amor!”

NOTA: Faleceu no dia 23 de agosto de 2015, na Amadora, onde residia, o escritor gafanhão Ascêncio de Freitas. Natural da Gafanha da Nazaré, viu a luz do dia no Forte da Barra em 3 de agosto de 1926.
Em 1949, fixou-se em Moçambique, onde viveu três décadas, sem nunca esquecer as suas raízes. Nos seus livros, de vez em quando, deixava transparecer ou evocava com nitidez marcas indeléveis das suas origens. Na sua obra, sobretudo contos e romances, Ascêncio de Freitas apoia-se, com riqueza de pormenores, fundamentalmente, em vivências moçambicanas, o que lhe deu legítimo direito a integrar antologias daquele país irmão.

sábado, 3 de novembro de 2018

Coisas de antigamente (1)

Propriedade agrícola 



Sobre a propriedade agrícola, diga-se que nos primeiros tempos do povoamento desta região ela era razoavelmente extensa. Porém, à medida que o número de famílias foi aumentando, por força de novos povoadores e seus descendentes, em grande número, logo a terra começou a ser retalhada. E nunca mais deixou de o ser.
Também a venda de propriedades se fazia com muita facilidade, numa prova evidente de pouco apego à terra. Daí dizer-se, por exemplo, que se trocava um terreno por uma fornada de boroa ou por uma caldeira de papas. Sublinha o Padre Rezende, a propósito disto, que “ainda hoje se diz que um tal José Gafanha vendeu uma grande propriedade por... um GABÃO!” E continua: “Manuel Petinga, da Nazaré, possui uma escritura de 1807, pela qual Jacinto Francisco Sarabando tinha comprado a Luísa Maria, viúva de António Ferreira, uma terra no sítio da Chave por vinte e quatro mil réis. Apesar daquele local ser o terreno das primeiras culturas, e portanto o mais valorizado, foi vendido por este preço insignificante. Hoje [1944] ‑ continua o Padre Rezende – vende-se o metro quadrado a 17$00 ao norte, a 5$00 ao centro e a 2$00 ao sul da Gafanha”. Bons tempos, dizemos nós! 

Fernando Martins

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Memórias da "Praia do Farol"(2)

Vi muita gente feliz com lágrimas 

A tantas entradas deste navio assisti...
Na hora de esperar (foto recente do meu arquivo)
Das memórias que retenho da Praia do Farol, as mais emotivas estão ligadas à entrada dos navios de regresso dos bancos da Terra Nova e da Gronelândia, carregados de bacalhau salgado e acamado no porão. Dizia-se que a salga, com o balançar do barco por força das ondas alterosas, estava na base de um fiel amigo mais saboroso. Mas disso pouco sei.
O meu pai foi bacalhoeiro desde que tomei conhecimento do mundo que me cerca, mais concretamente a partir dos meus cinco anos. Evoco a sua partida  para a viagem, com a minha mãe lacrimosa, e nós, eu e o meu saudoso irmão, calados, a olhar para o pai e para a mãe, sem termos palavras para dizer, mas com a tristeza contagiosa deles. O meu pai abraçava-nos e beijava-nos, calado, com lágrimas furtivas, e lá ia. Depois, ficávamos com a alegria da esperança de que num dia qualquer haveria de voltar para junto de nós.
Quando, pelas notícias, se sentia ou percebia que o regresso da faina estava próximo, não disfarçávamos a alegria. E na hora própria, corríamos para a boca da barra com a mãe e tantos outros familiares, olhando sempre o navio que esperava a maré. E nunca mais apontava a proa para o farol… A seguir, vagarosa mas firmemente, aproxima-se da meia-laranja com os pilotos da barra a indicar, ao que julgo, o trajeto mais seguro, que o canal era traiçoeiro com os assoreamentos frequentes. E com a aproximação do navio, tudo se agitava, todos acenavam com lenços ou bonés, alguns até queriam fazer-se ouvir pelos pescadores e demais tripulantes, gritando os seus nomes.
Seguia-se a correria, a pé, de bicicleta ou de carro, quando tal era possível, para o cais de desembarque, na Cale da Vila ou Chave, Gafanha da Nazaré. Os familiares de longe vinham de táxi. Vi muita gente feliz com lágrimas, no dizer do escritor João de Melo.

Flores e saudades pelos nossos fiéis defuntos


Na quarta-feira, a Lita foi a Pardilhó, sua terra natal, para cumprir a devoção de celebrar os seus familiares que ali dormem o sono sem fim. Crente que é, não podia deixar de rezar por eles e de com eles conversar sobre tantas vivências em comum. Ainda hoje, quando evocamos recordações que jamais nos abandonam, toda a família sabe imitar e repetir palavras e atitudes de bem que nos perpetuam no tempo presente e para além dele, como  o amor das tias que educaram a Lita. 
O Dia de Todos os Santos, que se liga indelevelmente ao Dia dos Fiéis Defuntos, está gravado nos nossos corações desde crianças. Pessoalmente, fui interiorizando o culto dos nossos familiares e amigos que já adormeceram no regaço de Deus, desde a infância, levado pela mão por  minha saudosa e querida mãe. 

Há anos, em Pardilhó, com naturais e descendentes residentes em muitos lados, sobretudo em Lisboa e à sua volta, chegou a celebrar-se o Dia dos Fiéis Defuntos, 2 de novembro, no domingo seguinte, para que os migrantes pudessem deslocar-se à sua terra de origem, atraídos pelas memórias de quantos repousam no cemitério pardilhoense. 
O culto católico, com flores e velas a traduzirem amor e saudade, aconchegava toda a gente. Mas sinto que os tempos são outros e que as novas gerações já não conseguem seguir esta tradição carregada de fé e simbolismo. 

Hoje, por razões de saúde, não pude ir ao cemitério da Gafanha da Nazaré, mas vivi em espírito os mesmos sentimentos e os mesmos rituais dos que lá se concentraram em oração. As  flores, levadas pela Lita, traduziram a nossa saudade pelos que já fisicamente nos deixaram. Com elas, lá ficaram as nossas orações pelas almas de tantos que amámos e continuaremos a amar até ao fim dos nossos dias terrenos. 

Fernando Martins

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Este meu blogue ficará disponível apenas para consulta

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