Uns matraquilhos para os meus filhos

O Menino Jesus viria de madrugada

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Já lá vão muitos anos, mas o Natal desse tempo distante ficou-me na memória para sempre. Quando comprei em Ovar um bilhar de matraquilhos, à medida das idades dos meus filhos, resistente quanto baste, imaginei-os manhã cedo a correr para junto do fogão de sala, onde haviam deixado os sapatitos. O Menino Jesus viria de madrugada, segundo a tradição, para deixar, sorrateiramente, as prendas natalícias. Era cena intrigante para eles, decerto para todas as crianças, porque a chaminé, por onde teria de passar, estaria cheia de cinza. Mas os pais lá contornavam, delicadamente, o problema apoiados na certeza de que o Menino, que era Deus, nunca sairia sujo por causa da sua generosidade para com todos, em especial para quem se portasse bem. E estas histórias, que muitos julgam ridículas, não deixariam de ser, e ainda são, arte pedagógica enriquecedora do imaginário infantil, intrínseco à formação integral do ser humano


Por essa altura andava eu em tarefas profissionais ao serviço do Ministério da Educação em Ovar. Ao passar por uma loja de brinquedos, no centro da povoação, lá estava montado um bilhar com miúdos e graúdos a apreciá-lo através da vidraça da montra. Antes que fosse tarde, entrei e nem olhei ao preço. Afinal havia mais embalados. E regressei a casa, com as cautelas devidas, não ficassem eles desconfiados com embrulho tão grande para a idade deles.
Quando se deitaram, já tarde que era dia da consoada, eu e a Lita, com todo o cuidado, retirámos as peças das caixas e lá montámos tudo, afinando o que era de afinar. Já não recordo os clubes dos jogadores, mas o bilhar era realmente um trabalho bem acabado. 
Outras prendas nos sítios certos, nos sapatos de cada um, e fomos descansar, com o propósito de acordar cedo para apreciar a reação dos nossos filhos. Não dormimos muito bem naquela noite, porque a curiosidade não nos deixava. 
Ainda o sol não despontara no horizonte e já estávamos a pé. Ouvimos um barulho inesperado e corremos para o salão. Já estavam a jogar eufóricos. Um campeonato que se prolongou por muitos dias. Depois vieram amigos e os jogos não custavam dinheiro. Mas de tanto pontapé e outras tantas cabeçadas, alguns jogadores até ficaram com a cabeça partida. A graça foi-se perdendo com a idade e o bilhar ficou a morrer a um canto. 
Um pedreiro que nos reparava a casa, numa antevéspera de Natal, reparou no sono quase eterno do brinquedo que fora mágico para os meus filhos. Disse-lhe que estava à espera do machado. Que não fizesse isso, porque tinha reparação. “Então pode levá-lo”, disse-lhe eu. 
Dias depois, quando voltou para o trabalho, garantiu-me que passou a noite quase toda a preparar a surpresa para os filhos. “Nem calcula a alegria dos miúdos!”, frisou com satisfação.

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