Um dia destes, de calor de Verão em pleno Outono, fui à procura do meu amigo e antigo confidente Padre Manuel Ribau Lopes Lé, mais conhecido por Padre Lé, que serviu a Igreja na Gafanha da Encarnação até há pouco tempo. Sentado num sofá, recebe-me de olhos bem abertos. Os olhos que sempre lhe conheci. Cedo, porém, percebi que o Padre Lé, com o peso dos 87 anos de idade e das canseiras, de mistura com recentes achaques, estava fragilizado.
A recomendação que me acolheu indica que a memória recente tinha dado lugar à mais antiga, para onde ele encaminha, já com alguma dificuldade, as conversas sobre a sua vida sacerdotal.
Depois de concluída a escola primária, com o professor Oliveira, segue as pisadas dos pais, cujas artes, na marinha de sal e na lavoura, lhe ensinam como era a vida dura daqueles tempos.
Por essas alturas, nutre admiração pelo Prior Guerra. Olhava-o com respeito, media todos os seus gestos quando celebrava a missa em latim, pesava as palavras que ele lhe dirigia no confessionário e em ocasionais encontros. E um dia, numa eucaristia, sonha ser padre. “Quero ser padre como o Prior Guerra”, pensou. Mas como haveria de dizer aos pais? Estariam eles dispostos a aceitar a sua decisão? Uma coisa ele sabe: o pai concordaria sempre com a mãe. Porquê?, indaguei. O Padre Lé olha-me, fixamente, sorri e diz: “A minha mãe era Ribau!”
Um dia, a caminho duma terra que tinham nas Crastas [lugar agrícola da Gafanha da Nazaré], percebe que a mãe está bem-disposta. Seria boa altura? “Mãe, quero ir para padre”, diz a medo.
A mãe, calada por instantes, que foram decerto uma eternidade, olha para ele e pergunta: “O quê? Isso é a sério?”… “É”, afirma ele com convicção.
Segue-se a conversa com o Prior Guerra e, feito o requerimento, entra no Seminário da Imaculada Conceição da Figueira da Foz, da Diocese de Coimbra, a que pertencíamos, em 1936, com 14 anos de idade.
Passa depois pelos Seminários de Coimbra, de Aveiro [a Diocese fora restaurada em 1938] e de Cristo Rei dos Olivais.
É ordenado presbítero em 20 de Setembro de 1947, no Bunheiro, na vigília de São Mateus, por D. João Evangelista de Lima Vidal, Bispo de Aveiro, de quem guarda gratas recordações. Quando o questiono sobre isso, diz-me: “Éramos unha com carne.”
No dia 28 do mesmo mês, celebra Missa Nova na matriz da Gafanha da Nazaré. Recorda esse dia com um sorriso a encher-lhe o rosto, magro como sempre foi: “O Padre Guerra celebrava missa ao nascer do sol, em ponto, e eu sabia disso; cheguei atrasado, porque o Dinis Caçoilo, um amigo meu, quis levar-me de carro e eu fiquei à espera dele; quando entrei na sacristia, o nosso prior disse-me: Começas bem, Manel”. E uma gargalhada ténue soa, na entrevista, para encerrar a questão.
Foi coadjutor daquela freguesia, com o Padre Domingos da Silva Pinho, “que era um santo, humilde, homem de oração e sempre sem dinheiro, porque dava o que tinha aos mais pobres”. E acrescenta: “Certo dia, estavam a organizar uma peregrinação a Roma e o Padre Domingos não se inscreveu, porque não tinha dinheiro; eu então disse-lhe: vai e vai mesmo; eu trato do assunto; e tratei.”
Préstimo e Macieira de Alcoba, no Arciprestado de Águeda, recebem o Padre Lé durante cinco anos. Um dia, de férias em Á-dos-Ferreiros, da paróquia do Préstimo, de visita à igreja, olhámos para um crucifixo de madeira. Logo recebemos a explicação de quem tinha a chave do templo: “Aquele crucifixo foi feito, à navalha, pelo Padre Ribau [como também era conhecido]”. Percebemos, então, que a habilidade completa e rara que ele tinha pelas artes manuais e técnicas era um dom que cultivou com esmero.
Entra na freguesia da Gafanha da Encarnação em Outubro de 1957, no domingo de Cristo Rei. Até 11 de Outubro de 2009, data em que toma posse, como pároco, o nosso prior, Padre Francisco Melo.
Quem acompanhou de perto o Padre Lé, reconhece, perfeitamente, que sempre foi um sacerdote de fé firme, com a noção dos seus deveres de pastor. Vivo, dinâmico, atento, capaz de dar o conselho certo na hora exata, orante e fiel aos seus paroquianos. Daí as homenagens que lhe prestaram.
Reconhece que o Concílio Vaticano II foi uma porta que se abriu ao mundo. Houve algumas dificuldades em aceitar as decisões que a Igreja tomou, “mas com o tempo tudo se foi resolvendo”, garantiu-nos.
Agora, ao olhar para o Padre Lé, com as debilidades próprias de trabalhos sem peso e medida que levou toda a vida, concretizando um sonho alimentado desde menino, de amor à Igreja e ao seu Senhor e Mestre, Jesus Cristo, ainda lembramos as vezes que o encontrámos, qual mestre-de-obras ou engenheiro civil, em cima de andaimes, na construção da matriz da Gafanha da Encarnação. Reparação que fosse preciso executar, de imediato punha mãos à obra. E logo a seguir, ouvia em confissão quem o procurava e celebrava missa. Patente na sua entrega a convicção de que o sacerdote tem de se dar até ao fim da vida.
Fernando Martins
[30 de outubro de 2009]
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