Caramulo e os seus encantos

Das minhas memórias






O mês de agosto de 2014 foi muito rico a nível de férias. Eu e a Lita fomos uma semana para o Caramulo, a serra mais bonita de Portugal, no dizer de quem a conhece mais de perto, sobretudo pelos que a visitam com objetivos de nela descobrirem cantos e recantos entre vales e montes, ora revestidos de verdura que alimenta gado e pessoas, ora mostrando a agressividade dos picos cortantes das pedras ancestrais acolitadas por equilíbrios fascinantes. 
Houve tempo para visitar aldeias típicas, de velho casario talhado pela mão do homem com materiais oferecidos pela mãe-natureza, aqui e ali ofendido por moradias que contrastam com as rudes habitações dos serranos de antanho. 
Curvas e contracurvas, fascinados pela paisagem, eu e a Lita tentámos, mesmo que levemente e a correr, seguir os passos de Jaime de Magalhães Lima, que há 100 anos conheceu a serra e as suas gentes, como pude ler, com gosto, no seu livro de edição póstuma, "Entre Pastores e nas Serras". O erudito aveirense, amante da natureza e dos seus ares puros, mas também do povo simples que sobrevive do que a terra dá, terá sido, ao que julgo, o primeiro e mais puro ecologista da nossa região. E não foi por acaso que defendeu a necessidade de evitar meios de transporte que lhe impedissem o contacto com o povo. Chegou a fazer caminhadas, nas suas pesquisas pelo Caramulo, de nove horas de puro deleite.

Fernando Martins

A NOSSA GENTE — Fernanda Matias

Fernanda Matias e Maria Helena 

Conheço a Fernanda desde que me conheço. Quase vizinhos, não podia deixar de ser assim. Também sempre estão nas minhas memórias de infância a sua mãe, a Tia Célia, de seu nome completo Carolina Célia Matias, a sua avó Joana e os seus irmãos: Ezequiel, Aldina e o Manuel. Este era para nós, colegas da escola da Tia Zefa, entre a sua e a nossa casa, o “Necas da Ti Célia”. Outros diziam “Nequitas da Ti Célia”.
Ao falar da Fernanda, não podia deixar de lado a sua avó Joana, que minha mãe e outras mulheres da terra, muitas sem dúvida, tratavam com deferência, num misto de gratidão e admiração. Um dia a minha mãe esclareceu-me: Foi a Dona Joaninha que te ajudou a vir ao mundo. Era, como diziam alguns, uma curiosa que ajudava nos partos. Eu garanto, pelo que ouvi, que a Dona Joaninha era uma afamada parteira, com um saber de experiência feito. Daí o respeito com que a tratavam.
Foi na escola que reparei na forma de vestir da Tia Célia: Luto carregado dizia alguma coisa. E foi a minha mãe, Rosita Facica, que me elucidou. O marido, José dos Santos Matias, de 32 ano, tinha morrido no afundamento do lugre Maria da Glória, que fora torpedeado por um submarino alemão, no dia 5 de junho de 1942. Outros quase vizinhos também morreram e as suas mulheres nunca mais se casaram nem praticamente deixaram o luto. Refiro-me ao Domingos Sarabando e ao Manuel Gafanhão.

E o presépio vai ser guardado...

O DESARMAR DO PRESÉPIO  - JÚLIO DINIS



Em criança arrasavam-se-me de água os olhos quando assistia ao desfazer do presépio que, em honra do Menino-Deus, se armava em minha casa pelo Natal. Cerrava-se-me o coração de melancolia, ao ver guardar outra vez na arca — e por um ano! — o Menino, Nossa Senhora, S. José, os grupos dos pastores, a vaca, o jumento, os três Reis, os anjos e todos os mais acessórios do pitoresco santuário, diante do qual, nesses quinze dias, se rezava a coroa em família, e se cantavam as loas da ocasião! 
Amargo dia de Reis, último desta abençoada quinzena, já te não via assomar sem que se me enevoassem aquelas puras alegrias infantis. Que não encontrásseis mais estorvos pelo caminho, venerandos Magos! 
Que aquela milagrosa estrela que vos trouxe a Belém, vos não fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! 
Fatal 6 de Janeiro! Com o seu anoitecer, anoitecia-me o coração: voltava a vida normal, voltavam os bancos das aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia sobretudo tão associada à férula do mestre-escola! e — o que era pior que o mais — acabava aquela santa comunidade, em que durante quinze dias vira a família; o lar doméstico já não ofereceria o alegre tumulto e desordem, em que velhos e crianças tomavam parte, esse ruído e confusão que tão fundo calava no coração de todos. 
A solenidade que nos reunira sob o mesmo tecto, que nos fizera viver a mesma vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos às claras na despedida; mas suspeitávamos que as nossas lágrimas tinham companheiras envergonhadas. Quantas vezes surpreendíamos segredos de comoção, que nos redobrava o choro! Suspeitava-o eu então, mas acredito-o agora que, apesar de na idade em que a lei me autoriza a não me considerar criança, ainda não sou superior a cenas daquelas. 

Júlio Dinis
In Serões da Província

NOTA: Depois dos Reis, o nosso Menino Jesus volta para o seu lugar num espaço digno, talvez olhando para quem está ou chega à nossa casa. Afinal, continua nos nossos quotidianos de cristãos ligados indelevelmente às nossas tradições e convicções. A roda da vida é assim. Qualquer dia a Páscoa, a principal festa dos que acreditam na Boa Nova de Jesus Cristo. E o Natal virá lá para o fim do ano.
Podia escrever algo relacionado com os Reis e com o desfazer do presépio, mas hoje optei por um texto de Júlio Dinis, um escritor que muito me entusiasmou na minha adolescência. Subscrevo, por isso, quanto ele disse. 

Natal - Os sabores da nossa alegria



Logo mais, vamos celebrar a consoada com o nosso Menino Jesus a contemplar quem está sentado à mesa e quem permanece espiritualmente nas nossas memórias, hoje mais frescas do que nunca por força das saudades enormes que o Natal suscita em todos.
Estou a ouvir uma gargalhada bem timbrada do meu pai, quando uma priminha disse que ele estava «“ogadinho” com o cheiro dos ovos» que a minha mãe manuseava para os bilharacos e rabanadas. E as gargalhadas prosseguiam durante a noite santa em épocas sem televisão nem rádios. O tradicional bacalhau com todos, bem regado com azeite comprado clandestinamente (tempos de guerra), sempre com olho atento na doçaria que ao lado esperava a sua vez. Eram, verdadeiramente, os sabores da nossa alegria. E a noite prosseguia até a mãe dizer, na sua candura que perdura no meu ser, que era preciso dormir para não perturbar o trabalho do Menino Jesus na sua santíssima tarefa carregada de amor, com a missão de tornar felizes todos os meninos do mundo, com as aguardadas prendinhas. São tantos, dizia a minha mãe, que as prendas não poderiam ser muito caras. Era este um recado mágico pela certeza de que o Menino Jesus entraria sorrateiramente pela chaminé, sem se sujar. Milagre, admiti uma vez. Mais tarde, porém, lá vinha a verdade de que afinal o Menino apenas dava saúde aos nossos pais para poderem trabalhar e comprar as prendinhas da consoada. 
Os tempos são realmente outros. E já adulto ouvi tantos criticarem estas estórias das prendas do Deus Menino... que era um erro enganar as crianças... que se devia dizer a verdade... etc... etc. Esquecem-se os críticos de que as crianças, todas as crianças do planeta e de todas as eras, precisam do mágico, do maravilhoso, de fadas e de heróis que despertam nelas a capacidade de sonhar! E quem isto pregava passou a aceitar o Pai Natal que um publicitário inteligente soube incutir no povo para se vender mais. O negócio tentou fechar a sete chaves o nosso Menino Jesus, mas Ele continua no coração de muitas famílias. Eu sei que há pais natais que levam nos sacos prendas e palavras, simpatias e emoções. Contudo, eu continuarei com o nosso Menino Jesus que ocupa um lugar muito terno no meu coração. 
Para nosso consolo, a ceia de consoada marca indelevelmente os hábitos da grande maioria das famílias, com o mesmo espírito dos nossos tempos da infância, espírito que queremos legar aos que nos perpetuam no tempo e no mundo. 

Fernando Martins 

Budismo - A busca da serenidade plena



Margarida Cardoso, da União Budista Portuguesa, esteve no CUFC (Centro Universitário Fé e Cultura), na quarta-feira [3 de abril de 2006], à noite, para falar sobre Budismo. Com uma sala cheia, presidiu à “conversa” Alexandre Cruz, director daquele centro, que salientou a premência de todas as religiões e filosofias se unirem para a defesa de uma ética universal. Moderou António Martins, docente da Universidade de Aveiro, que sublinhou a importância de conhecermos outras formas de pensar, para convivermos com os outros, sendo mais tolerantes.
O primeiro desafio para se perceber o Budismo partiu de um convite, original entre nós, lançado pela palestrante: “Sentados comodamente, mãos sobre os joelhos, olhos fechados; vamos sentir o ar a entrar e a sair pelas narinas; vamos ouvir o barulho da sala… e agora o silêncio; deixemos entrar os pensamentos…”. Isto, porque o Budismo é essencialmente uma filosofia de vida, uma prática enriquecida por experiências de meditação, um estado de consciência límpido, luminoso, de compaixão e de sabedoria, frisou Margarida Cardoso.
A convidada do CUFC recordou que Buda, meio milénio antes de Cristo, abandonou os prazeres para procurar a iluminação, que só será conseguida através da atenção que prestarmos a “grandes verdades”, as quais nos conduzem à libertação interior absoluta. Disse que o sofrimento tem origem no desejo, que a eliminação do desejo leva ao fim do sofrimento, e que, quando atingirmos esta fase, ao longo de uma caminhada de intenções, acções, recolhimento e concentração puros, alcançaremos o nirvana, ausência total da dor, meta perseguida pelos budistas.
Questionada sobre o dia-a-dia, entre os ocidentais, da vivência budista, Margarida Cardoso referiu que todos têm “vidas normais, com casa, família e trabalho”. Reúnem-se para meditar, para se tornarem “mais conscientes do momento presente”, tendo sempre em conta a busca das “boas relações com as pessoas”, o interesse por tudo quanto os rodeia, segundo uma ética assente na positiva. “Não basta não roubar; temos de ser generosos”, adiantou. “Os budistas ultrapassam com mais facilidade as situações de stresse, porque aprendem a relaxar nos encontros de meditação, também conhecidos por yoga”, disse.
Sobre a vida para além da morte, Margarida Cardoso afirmou que defendem o renascimento, que definiu como “ciclos de existência sem fim”. Referiu que, quando nós morremos, “se é que morremos”, o que vai permanecer são “marcas, fluxos de energia e de consciência, que são a nossa continuidade, o nosso renascimento”. Não aceitam Deus, nem qualquer ente criador, “porque o grande arquitecto é a mente humana”, sublinhou. Mas também não são dogmáticos, até porque há imensos mestres e escolas budistas que têm, como matriz comum, tão-só a procura da perfeição, que conduzirá à iluminação, ao nirvana, que é, afinal, a serenidade plena.

Fernando Martins

Publicado no Correio do Vouga em 3 de abril de 2006

Sugestões de férias para os meus amigos



Quem nasceu e vive com o som do mar a embalar o seu adormecer, e sente, ao acordar, as ondas a espraiarem-se nas dunas, não pode deixar de sonhar, também, com a silhueta dos picos da serra, que ao longe nos desafia. A primeira vez que fui à serra, e à medida que me aproximava dela, os meus olhos de menino pouco viajado ficaram deslumbrados. Senti um não sei quê na alma, um prazer inexplicável que ainda hoje, tantos anos depois, é um mistério no meu espírito. À serra vou sempre que posso e às vezes até juro a mim mesmo que um dia por lá hei de ficar uns tempos largos, para calcorrear montes e vales, entre vegetação luxuriante ou entre penedos com formas estranhas de figuras fantásticas que enriquecem o imaginário de qualquer um.
Há dias fui ao Caramulo à procura desses ares límpidos, alimentados, e de que maneira, pelo verde que tudo enche, ao som de regatos que deslizam do cimo dos montes, por entre pedregulhos que amplificam o cantar da água saltitante que apetece beber a toda a hora. E quando a sede aperta, como apertou depois de um almoço de vitela assada que só por ali tem um sabor como em nenhuma outra parte, então foi um regalo beber uns bons copos de água de fonte natural, recebida em bilha de barro vermelho que a tornou mais fresca.
Campo de Besteiros, São Tiago de Besteiros, Guardão, Janardo, Pedronhe e Cabeço da Neve foram alguns recantos da Serra do Caramulo que uma vez mais pude contemplar em dia partilhado com amigos que não esconderam o sortilégio que estas terras transmitem a todos os que chegam. Ruas e estradas amplas ao lado de ruelas empedradas que lembram tempos ancestrais, histórias de lutas travadas entre íncolas serranos e povos invasores, casario a cair de podre porque gente teve de emigrar, habitações com sinais de quem regressou à terra depois de muito trabalhar e de lutar na estranja, sanatórios abandonados porque os tuberculosos já se curam em casa, sem a ajuda dos ares puros da serra, de tudo um pouco se foi fixando na retina dos meus olhos, que nunca se cansaram de apreciar  miradouros naturais a paisagem a perder de vista.
Para os contemplativos, a Serra do Caramulo é uma bênção de Deus. Ali, longe dos habituais horizontes, sinto que a beleza não adulterada pelo mau gosto, em muitíssimos recantos, oferece a quem a visita a imagem do divino, que o céu contempla e abençoa com nuvens que batizam aspergindo tudo e todos.
A voz do silêncio que tantas vezes se fez ouvir, aqui e ali perturbada pela cantilena da água que descia apressada do cimo dos montes, à cata de gente que a saboreasse, ainda mais me convidava a cultivar a necessidade de voltar. O que farei sempre que puder, para encher os pulmões de ares puros e os pensamentos do aconchego do bem e do belo.
Proponho, ainda, a leitura de um livro, “Os poemas da minha vida”, de Marcelo Rebelo de Sousa. A edição é do “Público” e custa uns simples 6 euros. É-me sempre agradável apreciar a escolha de poemas feita seja por quem for. Como que sinto a sensibilidade e a alma de quem opta por este autor, por este ou por aquele poema.
Marcelo Rebelo de Sousa diz, no texto introdutório, que se decidiu por escolher poemas e poetas portugueses contemporâneos, do seu tempo. “Do tempo que vivi e vivo”, referiu.
Logo depois admite que terá ficado uma seleção “dececionante” do seu “tão significativo passado”, passado esse que nunca esquece. Ainda assim, diz que escolheu “o presente e o futuro”, na linha do seu “modo de ser”.
Por esta seleção de Marcelo passam poetas de Língua Portuguesa dos anos 50, 60, 70, 80 e 90, até hoje, que também proporcionam ao leitor, que gosta de poesia, momentos de encantamento.
O meu voto é que nas férias [de Natal ou noutras] que se avizinham muitos aproveitem para cultivar o espírito, na certeza de que o corpo também lucrará.
Proponho, ainda, um disco da minha conterrânea e amiga Jacinta: Tributo a Bessie Smith, com edição de Blue Note e aposta da TSF. Se não falarmos dos nossos valores, quem o poderá fazer? E não é a Jacinta a primeira artista portuguesa de jazz a ser editada pela Blue Note? Dela sublinha, José Duarte, a dicção, a força interpretativa e a sensibilidade. E a propósito de algumas interpretações de Jacinta, refere que é preciso ouvir, dar a ouvir e popularizar esta obra de arte.

Fernando Martins

Nota: Publicado no Correio do Vouga em 3 de abril de 2006

O Ângelo Ribau também nasceu neste dia em 1937



Há tempos, perguntaram-me o que é que mais me marcou quando estive doente e acamado durante a minha juventude. Respondi, sem hesitar, que, durante esse período da minha vida, fiquei a saber quem eram os meus grandes amigos, mas também quem eram os falsos amigos. Os falsos amigos procurei esquecê-los; os grandes amigos têm lugar muito especial nas minhas memórias e no meu coração. 
Hoje, vou referir-me ao Ângelo Ribau Teixeira, porque nasceu no dia 17 de novembro de 1937 e porque me visitava todos os dias, Deixou-nos, prematuramente, em 11 de agosto de 2012. Digo prematuramente porque, numa lógica natural, poderia, como eu, estar no mundo terreno a saborear a vida, falando, lendo e escrevendo, concordando com o que eu publicava, mas também discordando com aquela franqueza que o caracterizava, sem papas na língua, o que me obrigava, por vezes, a reconstruir o meu pensamento a propósito de certos temas.
O Ângelo foi desde muito cedo um apaixonado pela música, como os demais irmãos, mas também pela fotografia, o que o levou a procurar conhecer até ao pormenor a evolução da arte de fotografar e de revelar o negativo, seguindo de muito de perto as técnicas usadas por Niépce e Daguerre, nos meados do século XIX. E com que arte e paixão utilizava os produtos químicos, o vidro e nem sei que mais para finalizar na impressão em papel. Na guerra colonial, não dispensou o equipamento portátil para fotografar e revelar as suas fotografias. E ainda escreveu “Retalhos das memórias de um ex-combatente” e o “Marnoto Gafanhão”. 
O meu saudoso amigo facilitou-me, durante a doença, o acesso à biblioteca do avô materno e dos tios, Diamantino Ribau e Josué Ribau, o primeiro padre e o segundo professor da matemática, cujos livros “devorei”, que pouco mais podia fazer. Mas ele também por ali ficava, à beira da cama, lendo, lendo e conversando sobre tudo e mais alguma coisa, fechando a conversa, inúmeras vezes!, com uma gargalhada que ainda estou a ouvir.

Fernando Martins

Egas Moniz na estação do Porto

  Quando vou ao Porto, a capital do Norte, lembro-me com frequência dos painéis que decoram a sala de entrada da Estação Ferroviária. Nunca ...