“Nenhum outro caudal nosso corre em leito mais duro,
encontra obstáculos mais encarniçados, peleja mais arduamente em todo o
caminho… Beleza não falta em qualquer tempo, porque onde haja uma vela de barco
e uma escadaria de Olimpo ela existe.”
Ontem [10 de setembro de 2008] subi o Douro com olhos bem
abertos à contemplação das belezas de que tanto tenho ouvido falar. E lido, em
autores que cantam o rio que cortou cerce o seu leito, deixando marcas de
feridas que os séculos fizeram secar. As chagas sararam, mas as crostas
ressequidas lá estão, oferecendo a quem as aprecia a dureza da corrida
desenfreada das águas soltas e apressadas com vontade de descansarem no oceano.
E se a beleza da paisagem é indiscutível, ao modo de nos obrigar a voltar, a
paisagem bonita das velas dos barcos, de que fala Miguel Torga, já se foi com a
voracidade do progresso.
Os rabelos há muito que perderam o privilégio de temperar e
refinar o Vinho Fino nas bolandas da descida da Régua até Gaia. Aqui recebeu o
batismo de Vinho do Porto, numa clara manobra de marketing, bem engendrada há
séculos, que tais técnicas não são exclusivas dos nossos tempos.
O dia nasceu enevoado, com humidade cortante, junto à foz do
Douro, assim chamado pela cor amarelada das lamas barrentas que as fortes
correntes arrastavam dos montes e montanhas que guardam o rio e o tingem. Mas
nem por isso proibia os olhares dos que gostam da novidade. Mais tarde, o sol
furou as nuvens que nos vieram saudar. E então, o deslumbramento caiu sobre o
“Infanta”, um barco que oferecia tranquilidade a quem viajava, pela serenidade
com que enfrentava as águas doces que buscavam o casamento, apressado, com as
águas salgadas do mar.
O verde da paisagem entrava-nos na alma, vindo de todos os
cantos. Do arvoredo que não acusava falta de rega e do rio que o refletia, como
sinfonia de acordes que nos emoldurava o espírito em dia de mais nada que
fazer. Aqui e ali, casas semeadas pela encosta, ruas serpenteantes que as
uniam, solares com capelinhas que abençoavam as vinhas, fonte que ainda não
secou, dando "petróleo" tinto e branco àquele povo.
Mais pontes que ligavam gentes e terras do alto e do baixo
Douro, pás de moinhos de vento, não para a farinha, mas tão-só para as novas
energias arrancadas do cimo das montanhas que o deus Éolo, com a sua
brutalidade, de quando em vez nos oferece. O que mais encanta o viajante,
contudo, como marca indelével, são as escadarias de pomares e vinhas, quais
altares ao deus-natureza, fonte de subsistência de povos que teimosamente
procuraram adaptar-se a circunstâncias adversas. Hoje, talvez poucos tivessem a
coragem de ficar agarrados à terra-mãe, com tal tenacidade e paixão, a não ser
que encontrassem pelo caminho outra Antónia Ferreira, a Ferreirinha, com artes
de convencimento e de estímulo.
O Douro, rio e região, fica sempre na alma de quem o visita
e o observa de perto, admirando a obra de Deus e de homens e mulheres
determinados, que nos deixaram como herança a ter em conta a força e a
importância do trabalho.
Fernando Martins
Nota: Esta viagem foi organizada pela Câmara Municipal de
Ílhavo e integrou-se na Semana da Maioridade. Ela serviu, também, para
reencontrarmos e convivermos com gente que não víamos há muito tempo.
F.M.
Sem comentários:
Enviar um comentário