A CAMA NOVA


Numa tarde quente, quase no final do ano letivo, o Zé Carlos convidou-me para ir até sua casa. As aulas tinham terminado há pouco, com o professor algo perturbado, contra o que era costume, pela falta de dedicação ao estudo da malta da quarta classe. Falta de estudo não seria assim tanto, mas a verdade é que as respostas certas às perguntas do mestre sobre Geografia de Portugal não saíam, naquele dia, como ele decerto gostaria.
A exigência de saber de cor as linhas férreas e de conhecer, de forma papagueada, os rios do continente, das ilhas e colónias, entre outros saberes alusivos aos territórios pátrios, que na altura se estendiam pelos quatro cantos do mundo, como apregoavam os políticos, deixava os alunos um pouco baralhados. Por vezes, ficavam bloqueados, com a boca incapaz de dizer coisa com coisa. O cérebro como que adormecia, talvez cansado, quando o professor ficava zangado. Na sua ótica, havia alunos que não estudavam o suficiente, de forma a fazerem boa figura nos exames finais. Mestre que se prezasse queria que os seus discípulos soubessem tudo o que lhes ensinava, mesmo para além dos programas.



Por que diabo haviam de saber, de cor e salteado, tantas coisas das várias regiões do País, que, eventualmente, nunca visitariam? E para quê tais conhecimentos, se a vida de então, para a maioria, nada teria a ver, no dia a dia, com esses temas? Era o que se dizia à boca cheia nessa altura, com certeza sem razão, porque “o saber não ocupa lugar”, lembravam outros.
O Zé Carlos tinha sido, naquele dia, um mártir. À mais pequena hesitação, lá vinham os berros do mestre e logo a seguir as reguadas da praxe. Reguadas, sim, porque, como então se pregava, em casa, na catequese, na escola e na oficina, “quem dá o pão dá o castigo”. Os saberes, está bem de ver, eram alimento do crescimento cultural. Pão amargo que muitos rejeitaram, quedando-se, teimosamente, num analfabetismo atroz, que marcou algumas crianças e jovens de famílias sem posses e sem ajudas para vencerem barreiras, seguindo por caminhos menos agrestes.
Certamente por esse dia menos feliz, o Zé Carlos desejou mostrar-me que há vida e alegria para além da escola. Por isso o convite para que o acompanhasse ao seu novo quarto, que o era de todos os irmãos, como me foi dizendo. E lá fomos.
Pelo caminho ainda houve tempo para dar uns pontapés na bola, feita de uma meia gasta pelo uso e cheia de trapos. Não faltava quem tivesse habilidade para a fazer bem redondinha, não fosse ela enganar alguém com os ressaltos irregulares no campo, que era a rua principal da aldeia. Poucos automóveis interrompiam as jogadas ou os remates à baliza. Como “postes”, duas simples pedras que diziam, sem dúvidas, quando era golo e quando não era.
O tio Xico, homem prudente, lá foi dizendo que era preciso cuidado, porque a bola podia enganar-se e partir os vidros da casa vizinha. Também podia aparecer, de repente, um automóvel e acontecer algum acidente grave. Mas não. Que me lembre, nunca se feriu ninguém, que o treino e a perspicácia da meninice sabia reagir a tempo. Mas vidros partidos, lá isso houve, o que provocava ralhetes e mais ralhetes, com os pais a pagarem os prejuízos e os filhos a serem severamente castigados, para que aprendessem a comportar-se como gente responsável.
Chegámos a casa do meu amigo sem pressas. Casa de lavradores que viviam do que produziam em campos magros. O Zé Carlos e os irmãos, mais velhos do que ele, não mostravam ares de quem passa fome. Eram até bem constituídos fisicamente, sinal de que o caldo das refeições era bem adubado. Depois, nunca faltava a boroa com conduto, que o porco cevado ao natural oferecia para quase todo o ano.
No centro do pátio, com o recanto da estrumeira a marcar presença malcheirosa, debicavam galinhas com um galo a comandar as operações. Alfaias agrícolas dormitavam à volta, à espera de vez para se aplicarem nos campos. Do lado direito, com a porta bem aberta, por onde entravam e saíam moscas e mais moscas, o curral das vacas dava nas vistas. Por ali nos quedámos a conversar sobre tudo e sobre nada. Veio à baila a vida da escola naquele dia. “Nem me fales disso” — retorquiu o Zé Carlos. “Amanhã o professor está mais mansinho”, adiantei eu, que já tinha percebido os hábitos do velho mestre que todos respeitávamos, afinal.
— Então quando é que vamos ver o teu quarto novo? — questionei o meu amigo.
— Vamos lá! — disse ele, com ar de alegria incontida.
Zé Carlos encaminha-se para o curral onde duas vacas leiteiras ruminavam erva verdinha, decerto apanhada há pouco. Belos animais que trabalhavam no duro nas tarefas agrícolas, enquanto garantiam, de manhã e ao fim do dia, leite para uso da casa, algum, e para vender, o restante. Esta era uma fonte de rendimento a ter em conta.
O meu amigo, já esquecido da escola, aponta-me uma tarimba, feita de tábuas algo irregulares. Sobre ela, palha de centeio, com uma manta de tiras a servir de lençol. Depois, à espera de quem nela se deitasse, estava outra manta, mais escura.
Perante o meu silêncio, de espanto e incredulidade, o Zé Carlos foi falando, valorizando o trabalho do pai, que quis oferecer aos filhos um espaço amplo para dormirem à vontade. E sublinhou:
— Eu e os meus irmãos vamos estrear hoje esta cama!


Fernando Martins

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