Dia de Páscoa na Gafanha da Nazaré

Alguns apontamentos do meu diário

Folar à moda das Gafanhas

1. A Páscoa celebra, como é sabido, o grande mistério da nossa fé. Há um período, a Quaresma, que nos prepara para isso. Já no fim, o Tríduo Pascal congrega-nos intensamente para a vivência da paixão e morte de Jesus. Silêncio, meditação e oração, com jejuns, abstinências e partilhas, tornam mais expressiva a fé que de Deus no vem para em comunhão com todos construirmos um mundo melhor. Dir-se-á que esse propósito nos deve animar nos passos da nossa existência terrena. Para mim, a Páscoa é sempre uma mais-valia para o aprofundamento do meu envolvimento nos projetos da construção de uma sociedade mais fraterna, mais humanista. Por isso, valorizo de modo especial a festa maior do cristianismo. Maior, porque é da Ressurreição de Jesus Cristo que dimana a razão da nossa fé, dom de Deus ofertado a todos os homens e mulheres de boa vontade. Eu preciso da Páscoa. 

2. Fui educado desde menino para olhar a Quaresma como tempo de espera serena, de confiança absoluta na alegria que da Ressurreição nos vinha para nosso conforto espiritual. Era o tempo das confissões em massa, das orações pelas almas do purgatório, cantadas de porta em porta, com recolha de dádivas para mandar celebrar missas. Tempo sem festas populares e de maior atenção aos que sofriam no corpo e na alma. Também tempo dos folares feitos no fim-de-semana que antecedia o domingo de Páscoa. Folares para a família e para os afilhados de quem os tinha. Tantos ovos quantos os aniversários. É certo que em determinada altura não havia espaço para tanto ovo, mas também é verdade que há uns 70 anos se casava mais cedo. Os folares eram feitos com algumas liturgias e orações na hora de entrarem no forno. E depois de feitos, ficavam na gamela onde era feita a massa, cobertos por uma tolha. Comê-los, só no dia de Páscoa. Ao saírem do forno, lá vinha uma pequena prova de um folarinho feito do resto da massa que não chegou para mais um folar. Um bocadinho para cada um.

DIA DO PAI — O MEU PAI

O meu pai, em cima, à direita, de óculos, no dia do batizado do João Paulo, de quem foi padrinho
Dizem os calendários que hoje, 19 de março, se celebra o Dia do Pai. Pondo de lado as prédicas dos que dizem que estas celebrações não fazem sentido (eles lá saberão porquê), eu continuarei a respeitá-las e a valorizá-las, no sentido de me debruçar sobre a efeméride, ao menos nesta data, com mais ênfase. Mas insisto em dizer que todos os dias do ano tenho presente no meu espírito os meus pais, o meu irmão e outros familiares e amigos. E como crente, por eles rezo todas as manhãs, rogando a Deus que pela sua infinita misericórdia os mantenha no seu aconchego maternal, onde espero estar um dia, que não tardará muito,  pela ordem inexorável da vida.

O meu pai, Armando Lourenço Martins, mais conhecido por Armando Grilo, foi sempre um homem bom, sereno, acolhedor e incansável trabalhador. Não era homem de muitas falas nem de zangas, nem de guerras, nem de bisbilhotices. Honrado e extremamente poupado, comedido nas palavras e pessoa de fé. Quando vinha do mar, fazia questão de visitar o nosso prior, padre Guerra, a quem oferecia uma caldeirada e o tabaco a que tinha direito durante as pescas. E quando chegava a casa até dizia à minha mãe, que bem ouvi, que o nosso prior até o tinha confessado na sala, na altura da Páscoa.
Nunca me lembro de o ouvir criticar ou dizer mal fosse de quem fosse. Foi, por temperamento e formação, um homem responsável. Tenho para mim que as suas qualidades brotaram espontaneamente do facto de ter sido um menino-homem, porque entrou no mundo do trabalho, nas marinhas de sal, aos nove anos, e aos 15 já andava sobre as ondas do mar, na pesca do bacalhau. Naqueles tempos, não se falava de trabalho infantil e muito menos de escravatura. Falava-se, isso sim, da necessidade de sobreviver. Foi órfão de pai. Meu avô, Manuel Martins, morreu da diabetes, tinha o meu pai 12 anos. 
O meu pai, que me lembre, nunca teve férias. Enquanto marítimo, na pesca, só havia férias em caso de temporal. Em terra, nos dias de folga, trabalhava, incansavelmente, no quintal, porque gostava de ver tudo limpo e bem ordenado. Plantava árvores, semeava o que era normal, regava constantemente em épocas de seca e fumava constantemente o seu cigarrito de marca “Porto”, que os meus filhos lhe iam comprar quando já tinham pernas para correr… e tinham de ir mesmo a correr para terem direito a uns tostões para rebuçados. 
O meu pai morreu cedo, aos 61 anos, com um enfarte do miocárdio. Nunca o conheci doente. Resistiu cerca de um mês. E a sua morte fez dele o meu herói. 

Fernando Martins 

Caramulo e os seus encantos

Das minhas memórias






O mês de agosto de 2014 foi muito rico a nível de férias. Eu e a Lita fomos uma semana para o Caramulo, a serra mais bonita de Portugal, no dizer de quem a conhece mais de perto, sobretudo pelos que a visitam com objetivos de nela descobrirem cantos e recantos entre vales e montes, ora revestidos de verdura que alimenta gado e pessoas, ora mostrando a agressividade dos picos cortantes das pedras ancestrais acolitadas por equilíbrios fascinantes. 
Houve tempo para visitar aldeias típicas, de velho casario talhado pela mão do homem com materiais oferecidos pela mãe-natureza, aqui e ali ofendido por moradias que contrastam com as rudes habitações dos serranos de antanho. 
Curvas e contracurvas, fascinados pela paisagem, eu e a Lita tentámos, mesmo que levemente e a correr, seguir os passos de Jaime de Magalhães Lima, que há 100 anos conheceu a serra e as suas gentes, como pude ler, com gosto, no seu livro de edição póstuma, "Entre Pastores e nas Serras". O erudito aveirense, amante da natureza e dos seus ares puros, mas também do povo simples que sobrevive do que a terra dá, terá sido, ao que julgo, o primeiro e mais puro ecologista da nossa região. E não foi por acaso que defendeu a necessidade de evitar meios de transporte que lhe impedissem o contacto com o povo. Chegou a fazer caminhadas, nas suas pesquisas pelo Caramulo, de nove horas de puro deleite.

Fernando Martins

A NOSSA GENTE — Fernanda Matias

Fernanda Matias e Maria Helena 

Conheço a Fernanda desde que me conheço. Quase vizinhos, não podia deixar de ser assim. Também sempre estão nas minhas memórias de infância a sua mãe, a Tia Célia, de seu nome completo Carolina Célia Matias, a sua avó Joana e os seus irmãos: Ezequiel, Aldina e o Manuel. Este era para nós, colegas da escola da Tia Zefa, entre a sua e a nossa casa, o “Necas da Ti Célia”. Outros diziam “Nequitas da Ti Célia”.
Ao falar da Fernanda, não podia deixar de lado a sua avó Joana, que minha mãe e outras mulheres da terra, muitas sem dúvida, tratavam com deferência, num misto de gratidão e admiração. Um dia a minha mãe esclareceu-me: Foi a Dona Joaninha que te ajudou a vir ao mundo. Era, como diziam alguns, uma curiosa que ajudava nos partos. Eu garanto, pelo que ouvi, que a Dona Joaninha era uma afamada parteira, com um saber de experiência feito. Daí o respeito com que a tratavam.
Foi na escola que reparei na forma de vestir da Tia Célia: Luto carregado dizia alguma coisa. E foi a minha mãe, Rosita Facica, que me elucidou. O marido, José dos Santos Matias, de 32 ano, tinha morrido no afundamento do lugre Maria da Glória, que fora torpedeado por um submarino alemão, no dia 5 de junho de 1942. Outros quase vizinhos também morreram e as suas mulheres nunca mais se casaram nem praticamente deixaram o luto. Refiro-me ao Domingos Sarabando e ao Manuel Gafanhão.

E o presépio vai ser guardado...

O DESARMAR DO PRESÉPIO  - JÚLIO DINIS



Em criança arrasavam-se-me de água os olhos quando assistia ao desfazer do presépio que, em honra do Menino-Deus, se armava em minha casa pelo Natal. Cerrava-se-me o coração de melancolia, ao ver guardar outra vez na arca — e por um ano! — o Menino, Nossa Senhora, S. José, os grupos dos pastores, a vaca, o jumento, os três Reis, os anjos e todos os mais acessórios do pitoresco santuário, diante do qual, nesses quinze dias, se rezava a coroa em família, e se cantavam as loas da ocasião! 
Amargo dia de Reis, último desta abençoada quinzena, já te não via assomar sem que se me enevoassem aquelas puras alegrias infantis. Que não encontrásseis mais estorvos pelo caminho, venerandos Magos! 
Que aquela milagrosa estrela que vos trouxe a Belém, vos não fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! 
Fatal 6 de Janeiro! Com o seu anoitecer, anoitecia-me o coração: voltava a vida normal, voltavam os bancos das aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia sobretudo tão associada à férula do mestre-escola! e — o que era pior que o mais — acabava aquela santa comunidade, em que durante quinze dias vira a família; o lar doméstico já não ofereceria o alegre tumulto e desordem, em que velhos e crianças tomavam parte, esse ruído e confusão que tão fundo calava no coração de todos. 
A solenidade que nos reunira sob o mesmo tecto, que nos fizera viver a mesma vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos às claras na despedida; mas suspeitávamos que as nossas lágrimas tinham companheiras envergonhadas. Quantas vezes surpreendíamos segredos de comoção, que nos redobrava o choro! Suspeitava-o eu então, mas acredito-o agora que, apesar de na idade em que a lei me autoriza a não me considerar criança, ainda não sou superior a cenas daquelas. 

Júlio Dinis
In Serões da Província

NOTA: Depois dos Reis, o nosso Menino Jesus volta para o seu lugar num espaço digno, talvez olhando para quem está ou chega à nossa casa. Afinal, continua nos nossos quotidianos de cristãos ligados indelevelmente às nossas tradições e convicções. A roda da vida é assim. Qualquer dia a Páscoa, a principal festa dos que acreditam na Boa Nova de Jesus Cristo. E o Natal virá lá para o fim do ano.
Podia escrever algo relacionado com os Reis e com o desfazer do presépio, mas hoje optei por um texto de Júlio Dinis, um escritor que muito me entusiasmou na minha adolescência. Subscrevo, por isso, quanto ele disse. 

Natal - Os sabores da nossa alegria



Logo mais, vamos celebrar a consoada com o nosso Menino Jesus a contemplar quem está sentado à mesa e quem permanece espiritualmente nas nossas memórias, hoje mais frescas do que nunca por força das saudades enormes que o Natal suscita em todos.
Estou a ouvir uma gargalhada bem timbrada do meu pai, quando uma priminha disse que ele estava «“ogadinho” com o cheiro dos ovos» que a minha mãe manuseava para os bilharacos e rabanadas. E as gargalhadas prosseguiam durante a noite santa em épocas sem televisão nem rádios. O tradicional bacalhau com todos, bem regado com azeite comprado clandestinamente (tempos de guerra), sempre com olho atento na doçaria que ao lado esperava a sua vez. Eram, verdadeiramente, os sabores da nossa alegria. E a noite prosseguia até a mãe dizer, na sua candura que perdura no meu ser, que era preciso dormir para não perturbar o trabalho do Menino Jesus na sua santíssima tarefa carregada de amor, com a missão de tornar felizes todos os meninos do mundo, com as aguardadas prendinhas. São tantos, dizia a minha mãe, que as prendas não poderiam ser muito caras. Era este um recado mágico pela certeza de que o Menino Jesus entraria sorrateiramente pela chaminé, sem se sujar. Milagre, admiti uma vez. Mais tarde, porém, lá vinha a verdade de que afinal o Menino apenas dava saúde aos nossos pais para poderem trabalhar e comprar as prendinhas da consoada. 
Os tempos são realmente outros. E já adulto ouvi tantos criticarem estas estórias das prendas do Deus Menino... que era um erro enganar as crianças... que se devia dizer a verdade... etc... etc. Esquecem-se os críticos de que as crianças, todas as crianças do planeta e de todas as eras, precisam do mágico, do maravilhoso, de fadas e de heróis que despertam nelas a capacidade de sonhar! E quem isto pregava passou a aceitar o Pai Natal que um publicitário inteligente soube incutir no povo para se vender mais. O negócio tentou fechar a sete chaves o nosso Menino Jesus, mas Ele continua no coração de muitas famílias. Eu sei que há pais natais que levam nos sacos prendas e palavras, simpatias e emoções. Contudo, eu continuarei com o nosso Menino Jesus que ocupa um lugar muito terno no meu coração. 
Para nosso consolo, a ceia de consoada marca indelevelmente os hábitos da grande maioria das famílias, com o mesmo espírito dos nossos tempos da infância, espírito que queremos legar aos que nos perpetuam no tempo e no mundo. 

Fernando Martins 

Budismo - A busca da serenidade plena



Margarida Cardoso, da União Budista Portuguesa, esteve no CUFC (Centro Universitário Fé e Cultura), na quarta-feira [3 de abril de 2006], à noite, para falar sobre Budismo. Com uma sala cheia, presidiu à “conversa” Alexandre Cruz, director daquele centro, que salientou a premência de todas as religiões e filosofias se unirem para a defesa de uma ética universal. Moderou António Martins, docente da Universidade de Aveiro, que sublinhou a importância de conhecermos outras formas de pensar, para convivermos com os outros, sendo mais tolerantes.
O primeiro desafio para se perceber o Budismo partiu de um convite, original entre nós, lançado pela palestrante: “Sentados comodamente, mãos sobre os joelhos, olhos fechados; vamos sentir o ar a entrar e a sair pelas narinas; vamos ouvir o barulho da sala… e agora o silêncio; deixemos entrar os pensamentos…”. Isto, porque o Budismo é essencialmente uma filosofia de vida, uma prática enriquecida por experiências de meditação, um estado de consciência límpido, luminoso, de compaixão e de sabedoria, frisou Margarida Cardoso.
A convidada do CUFC recordou que Buda, meio milénio antes de Cristo, abandonou os prazeres para procurar a iluminação, que só será conseguida através da atenção que prestarmos a “grandes verdades”, as quais nos conduzem à libertação interior absoluta. Disse que o sofrimento tem origem no desejo, que a eliminação do desejo leva ao fim do sofrimento, e que, quando atingirmos esta fase, ao longo de uma caminhada de intenções, acções, recolhimento e concentração puros, alcançaremos o nirvana, ausência total da dor, meta perseguida pelos budistas.
Questionada sobre o dia-a-dia, entre os ocidentais, da vivência budista, Margarida Cardoso referiu que todos têm “vidas normais, com casa, família e trabalho”. Reúnem-se para meditar, para se tornarem “mais conscientes do momento presente”, tendo sempre em conta a busca das “boas relações com as pessoas”, o interesse por tudo quanto os rodeia, segundo uma ética assente na positiva. “Não basta não roubar; temos de ser generosos”, adiantou. “Os budistas ultrapassam com mais facilidade as situações de stresse, porque aprendem a relaxar nos encontros de meditação, também conhecidos por yoga”, disse.
Sobre a vida para além da morte, Margarida Cardoso afirmou que defendem o renascimento, que definiu como “ciclos de existência sem fim”. Referiu que, quando nós morremos, “se é que morremos”, o que vai permanecer são “marcas, fluxos de energia e de consciência, que são a nossa continuidade, o nosso renascimento”. Não aceitam Deus, nem qualquer ente criador, “porque o grande arquitecto é a mente humana”, sublinhou. Mas também não são dogmáticos, até porque há imensos mestres e escolas budistas que têm, como matriz comum, tão-só a procura da perfeição, que conduzirá à iluminação, ao nirvana, que é, afinal, a serenidade plena.

Fernando Martins

Publicado no Correio do Vouga em 3 de abril de 2006

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