UM PARTO NO MEU AUTOMÓVEL

Sede da Obra

Era certo que muitas raparigas entravam grávidas na Obra da Providência, algumas sem saberem, com rigor, o tempo de gravidez. Num princípio de tarde, uma jovem acolhida na casa alerta para a hora do parto. As dores começam a sentir-se e a angústia, natural, manifesta-se. Era necessário conduzi-la ao hospital da Santa Casa da Misericórdia de Ílhavo, como era habitual em casos semelhantes.
Logo a seguir ao almoço, bateram à minha porta duas raparigas apoiadas pela Obra, com o apelo urgente de as ajudar, já que um parto estaria iminente. Apressei-me, naturalmente. A futura mãe entra no meu automóvel, com sinais evidentes de que a hora se aproximava. Deitada no banco de trás, começou a queixar-se. Sentada ao  meu lado,  Dona Maria da Luz Rocha, fundadora e diretora da instituição,  começou a animá-la, dizendo-lhe que faltava pouco para chegar ao hospital.


O MEU AMIGO JERÓNIMO

Vi hoje o Jerónimo. Já não o via há muito. Estava à mesa do café a dormitar, como dormitam todos os velhos. Em qualquer sítio e a qualquer hora. Cá para mim, o Jerónimo estava a ensaiar mais uma das
suas muitas estórias, para contar a quem se sentasse com ele à mesa do café. O Jerónimo é um conversador nato. Basta uma palavra dita por um amigo, em qualquer circunstância, para logo ele disparar:
— Não te esqueças do que estás para dizer…
A partir daí, começava mais uma estória de um rol enorme de recordações que não tinham fim. Mas as estórias até lhe  saíam com graça.
Uns esgares faciais, expressivos, e mãos que enriqueciam os pormenores davam-lhe uma dimensão única. Por vezes, os ouvintes, que outra coisa não podiam ser junto dele, ainda suportavam umas palmadinhas, mais ou menos pesadas, conforme a força das convicções do orador por vocação.
— Pois é, meu caro Jerónimo. Ontem encontrei um amigo que regressou da estranja…
— Ó pá, não te esqueças do que estás para dizer! Aconteceu-me precisamente a mesma coisa. Um dia destes também dei de caras com o Xico, que não via há anos.
E lá vinha a estória do Xico que só o Jerónimo conhecia e que dava para um romance, como costumava afiançar. Com pormenores, ora tristes ora alegres, sempre ampliados ao jeito dos bons contadores de estórias, que, de uma palavra, podem muito bem ditar lindos contos. E no ar ficou perdida a conversa interrompida.
— Ó Jerónimo, ao jantar comi, com a fome que tinha, um frango que…
— Ó pá, não te esqueças do que estás para dizer! Um dia destes, à merenda, com a minha mulher a apreciar, comi um galo de uns dois quilos… Teimava que não era capaz de o comer e quis mostrar-lhe que à mesa ninguém me bate...
Ligadas a essa outras estórias de comezainas saíam cantadas da boca do nosso Jerónimo, qual delas a mais romanceada. É que o nosso homem não era pessoa para deixar para boca alheia a arte de convencer quem o ouvia. E a conversa interrompida lá ficava, mais uma vez, para quando o Jerónimo deixasse, se alguma vez deixasse…
Um dia também eu entrei no jogo do Jerónimo.
— Queres saber que há tempos, à entrada da Barra, um petroleiro…
— Ó pá, não te esqueças do que estás para dizer…
Ora o Jerónimo, um oficial náutico na reforma, não perdoou a minha ousadia de entrar nos seus domínios. Vai daí, entra a desfiar uma carrada de tempestades no mar alto, barcos que eram cascas de nozes,
naufrágios e heroicidades de lobos-do-mar… Até que, cansado de o ouvir, o Jerónimo, voltando-se para mim, perguntou:
— Ó pá, então o petroleiro?
— Qual petroleiro, Jerónimo?

Fernando Martins

NOTA: Jerónimo é nome fictício. De resto, mais uns toques ficcionais para enfeitar a estória, de base autêntica. 

PROPÓSITO

As minhas memórias vão surgir neste blogue ao sabor da maré, ao jeito de partilha com os meus leitores e amigos. Estórias, contos, vivências, experiências, acontecimentos, datas, pessoas, alegrias e,  porventura, algumas tristezas.  

Postais Ilustrados - Aveiro - 85

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