quarta-feira, 6 de março de 2019

Um conto de vez em quando

O Piteira 

Toda a gente da aldeia conhecia o Piteira. Era uma figura típica que não passava despercebida a ninguém. Não que fosse um artista, um pai de família exemplar, um proprietário de nome reconhecido na praça, um político de palavra fácil. Nada disso. Era simplesmente um “alma de Deus” e ébrio incorrigível. Magro, pele tisnada pelo sol e pelos ventos salgados da maresia, beata ao canto dos lábios, sempre do lado esquerdo, boné à marinheiro, olhos bem abertos para o infinito, nunca fitava de frente fosse com quem fosse, falava sem tino a maior parte do dia e até de noite. Pregava sermões não se sabe a quem, mas não se lhe conheciam animosidade de sua parte. Bebia tinto, sempre tinto, que outras bebidas o seu estômago não aceitava. Faziam-lhe azia, dizia a quem procurava saber o porquê dessa discriminação. 
Só o tinto, pois, e a qualquer hora, fazia do Piteira um bêbado famoso nas redondezas. Mas era um bêbado cordato. Não se notavam tendências agressivas, não armava zaragatas e até fugia delas, não discutia com ninguém e frequentemente respondia, a quem o interpelasse com menos delicadeza, “quem está, está; quem vai, vai”. 
O Piteira deambulava pela aldeia, ao deus-dará, indiferente a tudo e a todos, à chuva e ao vento, ao frio e ao calor. Como quem busca qualquer coisa que sabe difícil de encontrar. E a quantos teimavam em saber a razão de ser da sua vida, o porquê de gostar tanto do tinto, respondia com o silêncio e com olhares mortiços. Às vezes indiferentes e não raramente altivos. Conjecturava-se sobre algum desgosto de amor, sobre alguma revolta social, sobre algum complexo que o amarfanhava. Mas a tudo isso o Piteira respondia do mesmo jeito, como quem não deve nada a ninguém: –  Gosto de vinho porque sim! – foi a única explicação que um dia deu, não se sabe porquê. 
Na família do Piteira não havia alcoólicos. Gente simples, trabalhadora, honesta, pacata, não gostava que o seu Piteira desse má nota dos seus. Mas nem por isso deixava de mostrar estima por ele, aceitando-o quando aparecia e dele cuidando com carinho. O Piteira comia pouco em casa de uns e de outros familiares. Nunca de amigos, que também os tinha. Às refeições bebia água, simplesmente. Depois de comer, senta-se num banco tão velho como ele, perto de uma figueira ainda mais antiga, do tempo dos seus avós. Por ali se quedava, pensativo e calado. Via os sobrinhos mais pequenos e deles se ria do que faziam e diziam. Com os mais crescidotes, embevecido, talvez recordasse os anos em que foi moço de salinas, onde trabalhava de sol a sol à torreira de um calor abrasador e salgado. 
Em certos dias, sem sal para raer e para encher os montes nas eiras, o marnoto não lhe perdoava o não ter que fazer e lá o levava para as tarefas agrícolas no aido grande. Animava-o apenas o sorriso lindo e o ar donairoso das duas filhas do patrão, a Ermelinda e a Maria Rosa, que por ali passavam de vez em quando. Só por isso, valia bem esse esforço não remunerado do Piteira, em dias de tempo chuvoso ou sem sol que desse sal. Depois, num repente, saltava do banco e voltava às suas caminhadas, sem horizontes e como que perdido no tempo. Alheio a tudo, com a prisca ressequida e eternamente apagada que nunca lhe caía do canto esquerdo dos lábios gretados. Nos tascos por onde passava, inevitavelmente, havia sempre quem lhe oferecesse um copito de três, que ele engolia num trago e sem agradecer. Um aqui, outro ali, e tanto bastava para manter em alta o nível alcoólico que fazia do Piteira um doente crónico. 
Certo dia, um amigo, aproveitando ocasião de alguma lucidez, avançou com a ideia de o Piteira se tratar. Sempre podia ficar com mais saúde; o tratamento seria fácil; umas simples pastilhas receitadas por um médico seriam uma ajuda preciosa para começar a ter fastio pelo vinho. Depois poderia levar uma vida normal, com trabalho para não sobrecarregar ninguém; nem faltariam amigos e familiares que o amparassem, se estivesse de acordo. Até poderia casar e constituir família! Quando ouviu as palavras casar e família, o Piteira explodiu, como nunca ninguém o viu. Berrou sem nexo, praguejou com gestos agressivos. E fugiu. O Piteira saiu de cena na aldeia. O povo e a família estranharam a sua falta. 
Questionaram-se sobre o que teria acontecido ao Piteira: Por onde andará? Onde estará? Terá morrido com mais uma bebedeira mais forte? A polícia foi alertada e até apelos nas missas se repetiram. As buscas começaram. Ria e seus canais, cantos e recantos da aldeia foram batidos sem êxito. Terras vizinhas associaram-se às buscas. E nada. Quando a ideia da morte era ponto assente, o Piteira surgiu à luz do dia. 
Mais magro, com ar cadavérico e sem sinais de tinto. Lúcido. A família acolheu-o como filho pródigo. O nosso homem não deu explicações. Ninguém lhas pediu. O Piteira acamou em estado de exaustão. Recusava a comida. Esperava-se o pior. O médico bem receitou, mas o Piteira recusava sistematicamente os xaropes. A família, que o rodeava com muito carinho, pressentiu a hora da partida para a última caminhada. A vida esvaía-se lenta e firmemente. O Piteira, com a voz sumida, entrava em agonia. – Quero ver a Ermelinda… Quero ver a Ermelinda… – foram as suas últimas palavras. 

Fernando Martins

terça-feira, 5 de março de 2019

Reflexo num lago da serra do Buçaco


Esta foto, que batizei com o nome de reflexo, foi registada na serra do Buçaco, há mais de cinco anos. A serra, verdejante como de costume, proporcionava a quem chegava uma tranquilidade que inundava a alma. Indiferente a tudo, o ganso vivia o seu prazer de estar em plena natureza entregue às suas conjeturas que jamais me confessou, apesar de solicitado. O reflexo que captei talvez pudesse ser mais nítido ou expressivo, mas tal não consegui por falta de saber e arte. Ficará para uma próxima visita, se Deus quiser.

***
Este arrazoado vem a propósito de amanhã começar a Quaresma, tempo de reflexão e de renúncia ao supérfluo que nos abafa, mas ainda de tranquilidade, no contacto próximo com a natureza. 

segunda-feira, 4 de março de 2019

CARNAVAL: Gente feliz e galhofeira


Estamos no carnaval de tantas tradições em muitas terras do nosso país e no mundo em geral. Não me levem a mal, mas é festa que nada me diz. Não me perguntem porquê, porque não sei explicar. Sempre fui assim. Contudo, nada tenho contra os que vivem com intensidade transbordante estes festejos. 
Desde menino que via passar os mascarados a que não achava graça nenhuma. Muitos, a pé ou de bicicleta, mais tarde de motorizada e até de carro, exibiam-se naturalmente e,  falando com disfarce de voz, tentavam levar-nos a descobrir quem eram. Ficava-se por aí e a caravana, muito diferente do que veio depois, continuava. Não muito grande, é claro. Mais tarde, com o tempo, as coisas refinaram-se. 
Em épocas ainda da minha meninice e juventude, surgiram as cegadas em que o futuro fantocheiro Armando Ferraz foi mestre. Eram grupos maiores que se exibiam em zonas estratégicas da nossa terra e que tinham a sua graça. Tudo passou e presentemente o carnaval movimenta imensa gente, em algumas povoações, com organizações artísticas, reis e rainhas importados, ou escolhidos entre as populações. Gente bonita ou com graça. Tudo bem. Mas eu, que não me meto em apertos, não vou a esses festejos. Mas não quero deixar de desejar a toda a gente que seja muito feliz, otimista e galhofeira, com ou sem carnaval. 

FM


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Avenidas, ruas, alamedas, largos, jardins, travessas e becos


Quem dá uma ajuda?

A Gafanha da Nazaré tem avenidas, ruas, becos, alamedas, jardins, largos e travessas, cujo número nem consigo calcular. E também  sei que há, na Junta de Freguesia e na Câmara de Ílhavo, registo disso. Mas gostaria de saber, para além do número dos caminhos que calcorreamos, a história de cada avenida, rua, alameda, largo, jardim, travessa e beco. De quase tudo se saberá, porque é óbvio. Mas há designações curiosas que poucos saberão explicar.
Há anos, fui com o então presidente da Junta, Mário Cardoso, à cata de algumas curiosidades, que registei no meu blogue. Depois, o projeto não teve seguimento. Ainda pedi aos gafanhões que me ajudassem, mas ninguém teve pachorra para isso. Contudo, hoje lembrei-me de voltar ao tema. Não será preciso escrever muito. Basta um telefonema (934 210 446) e eu cá me encarregarei de registar o que me contarem. A foto fica por minha conta. 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Evocando D. João Evangelista como Bispo de Vila Real

Chegada à estação de Vila Real


Multidão no largo da Sé

Apresentação no púlpito




NOTA: Reportagem publicada na revista "Ilustração Moderna" - Março de 1927

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Forte Novo ou Castelo da Gafanha para os mais velhos recordarem

Forte Novo ou Castelo da Gafanha
Mais uma foto bastante antiga que ofereço aos mais idosos, em especial, porque hão de gostar de a ver. É que a imagem, de tempos que não consigo precisar, pode suscitar comentários que, no fundo, servirão para compor a história deste recanto da Gafanha da Nazaré. E neste caso, muitos jovens sairão enriquecidos porque o saber não ocupa lugar, mas dá-nos substrato que nos ajuda a conhecer a evolução e o progresso da nossa região.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Naus, Navios e Caravelas em Aveiro


Efeméride: 
1552 - 18 de fevereiro 

Cartaz do meu arquivo

«Em cumprimento de uma ordem recebida, Jorge Afonso, juiz de fora de Aveiro, enviou a El-Rei o rol de todas as “naus e navios e caravelas que nesta vila há”, no total de 72 embarcações». 

“Calendário Histórico de Aveiro” 
de António Christo e João Gonçalves Gaspar 


NOTA: Será que, neste ano da graça de 2019, teremos no Porto de Aveiro 72 embarcações de grande porte? Afinal, Aveiro, no século XVI, já era um porto importante.

Reflexos de vida de Fernando Martins

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Fernando Martins

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