Sobre o Amor

 Fábrica das Ideias, antigo Centro Cultural da Gafanha da Nazaré

Eu gosto do amor e gosto de amar. E também gosto de ser amado. O amor é uma expressão do sublime. Não o canto porque estou longe de ser poeta. Há muito que amar e muitas formas de amar. Há imensa gente a amar e outra tanta à espera de ser amada. Há amor para todos os gostos e a falta dele causa desgostos. Há amor conjugal, filial, fraternal, paternal, maternal, e por aí fora, até ao fim do mundo. Há amor entre jovens e entre velhos. Entre homens e mulheres e até pelos animais. Pelos pobres e pelos infelizes, pelos felizes e pelos que procuram a felicidade. Há o amor a Deus e o amor de Deus. Mas este é do tamanho do Universo. 
Há muito tempo passei pelo Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, hoje Fábrica das Ideias, e trouxe comigo esta marca indelével de quem ama. Se calhar, está a sofrer por amor. Não sei quem escreveu “Amo-te”. Será rapaz ou rapariga, homem ou mulher? Será correspondido ou não? Talvez este gesto corresponda a um desabafo. Pode ser uma atitude de esperança. Ou um grito de mágoa?

Fernando Martins

Férias em Pardilhó

Monumento ao emigrante
Largo Central
A Lita na sua terra, em visita com data imprecisa 

Em férias, onde quer que estejamos, lembramos sempre outras férias onde fomos felizes. Ainda bem, porque recordar é viver. Em Pardilhó, fomos felizes todas as férias de verão. Lá viviam as tias Zulmira e Aida, ambas solteiras e "mães" da Lita, que nutria por elas um amor carregado de ternura. Até devoção. Outra tia, a Lurdes, também "mãe", vivia em Aveiro e a Pardilhó voltava com frequência. Num ambiente de dedicação plena, partilhávamos fraternidade em tudo o que fazíamos e planeávamos. Saídas à praia da Torreira, em cuja mata passávamos horas em piqueniques previamente organizados com todo o rigor, onde nada faltava para miúdos e crescidos. 
A visita à praia, para molhar os pés, não podia fugir ao esquema. Mais para andar pelo areal e arredores do que para mergulhar nas águas normalmente frias. Não havia muito o gosto pelo mergulho nem sequer apetência pelo bronzeado. Acho que nos bastava o moreno natural da nossa pele. Havia na praia a merenda também preparada antecipadamente. Os nossos filhos, naturalmente pequenos, deliravam com o carinho dispensado pelas tias. O amor que lhes tinham era notório. 

Quando da Gafanha da Nazaré nos deslocávamos a Pardilhó, em qualquer altura do ano, a alegria deles expressava-se em crescendo evidente. Cantavam, exteriorizando o prazer que adivinhavam na hora do encontro. Certo e sabido. Nas férias de Pardilhó a saúde de todos era normal. Comia- se de tudo e nada fazia mal. Era uma alegria. Depois não faltava o encontro com outros familiares e amigos e os bancos do largo central, junto à igreja de S. Pedro, eram cúmplices de conversas infindas. Como sala de visitas da freguesia, o largo, constituído por dois espaços distintos, proporcionava o reencontro com pessoas que não se viam há muito. Nessas férias, anos e anos repetidas, havia passeios obrigatórios à Ribeira da Aldeia, com canal da ria cheio de moliceiros, bateiras e mercantéis, estaleiros à vista com carpinteiros e decoradores em ação, moliço que salta dos barcos para os carros de vacas, garotos que nadam na laguna, emigrantes que chegam e olham nostálgicos tempos que não voltam. Um ou outro pescador regressa da faina, enquanto alguns partem indagando dos melhores pesqueiros. Um serralheiro com graça e sentido comercial afixou, numa janela de sua casa, uma publicidade curiosa: "Fisgas que ensinam a pescar." Destinavam-se elas à pesca clandestina de solhas e linguados. 
Recordo ainda o pão fresco da padaria do Álvaro, de sabor único. Pão de forma normal e de coroa, este o mais apetecido. Nunca lhe conheci o segredo, mas que era excelente, lá isso era. Pardilhó era uma terra de muita migração. A falta de trabalho obrigou bastantes pardilhoenses a fixarem-se em Lisboa. A Lita, por exemplo, tinha na capital seis tios com suas famílias. Porém, nas férias, muitos vinham à terra natal para matar saudades, resolver problemas familiares e conviver com os amigos. Agosto era, sem dúvida, um mês de festa, com movimento desusado. E toda a minha família gostava das férias nesta altura do ano. 

Fernando Martins

Os nossos sonhos

Para não cair no esquecimento 
19 de agosto de 2016



Não falta, no seio da família, e não só, quem pressinta os nossos gostos, as nossas alegrias e até os nossos sonhos. E a partir desses pressentimentos, quando se age em conformidade, somos levados a reviver alegrias e vivências que, de alguma forma, nos dão imenso prazer.
O Algarve está muito no meu espírito, razão por que, quando calha a talho de foice, sou levado a sonhar voltar lá para umas férias reconfortantes, que me libertem de compromissos e rotinas. Enquanto estive na Figueira da Foz, a minha filha Aidinha e família rumaram às soalheiras praias e paisagens algarvias, de onde regressaram hoje. Acordado da sesta, a nossa Aidinha atirou-me: 


— Papá, queres ir à praia do Barril?
— A das âncoras, onde passei algumas férias tão agradáveis? — Atirei eu.
— Então prepara-te.
— Agora mesmo?
— Exato! — Garantiu-me ela.

Pegou num lenço comprido, vendou-me os olhos e começou a tirar-me as meias. De repente, senti os meus pés mergulhados em areia quentinha… depois água tépida deu-me uma sensação de alívio, qual exercício terapêutico. Tudo tão reconfortante… 
Pôs-me uma concha nas mãos e afiançou-me que estava na Praia do Barril. (A concha foi uma prenda, que muito me agradou.) 
A alegria à volta desta brincadeira a que aderi com gosto brotou espontaneamente. E a minha memória conduziu-me, como tantas vezes, até àquela praia do Algarve, de temperaturas e ambientes tão acolhedores. 

Fernando Martins

O Douro na alma de quem o visita






“Nenhum outro caudal nosso corre em leito mais duro, encontra obstáculos mais encarniçados, peleja mais arduamente em todo o caminho…
Beleza não falta em qualquer tempo, porque onde haja uma vela de barco e uma escadaria de Olimpo ela existe.”

Miguel Torga, in “Portugal”


Há anos,  subi o Douro com olhos bem abertos à contemplação das belezas de que tanto tenho ouvido falar. E lido, em autores que cantam o rio que cortou cerce o seu leito, deixando marcas de feridas que os séculos fizeram secar. As chagas sararam, mas as crostas ressequidas lá estão, oferecendo a quem as aprecia a dureza da corrida desenfreada das águas soltas e apressadas com vontade de descansarem no oceano.
E se a beleza da paisagem é indiscutível, ao modo de nos obrigar a voltar, a paisagem bonita das velas dos barcos, de que fala Miguel Torga, já se foi com a voracidade do progresso. Os rabelos há muito que perderam o privilégio de temperar e refinar o Vinho Fino nas bolandas da descida da Régua até Gaia. Aqui recebeu o baptismo de Vinho do Porto, numa clara manobra de marketing, bem engendrada há séculos, que tais técnicas não são exclusivas dos nossos tempos.
O dia nasceu enevoado, com humidade cortante, junto à foz do Douro, assim chamado pela cor amarelada das lamas barrentas que as fortes correntes arrastavam dos montes e montanhas que guardam o rio e o tingiam. Mas nem por isso proibia os olhares dos que gostam da novidade.
Mais tarde, o sol furou as nuvens que nos vieram saudar. E então, o deslumbramento caiu sobre o “Infanta”, um barco que oferecia tranquilidade a quem viajava, pela serenidade com que enfrentava as águas doces que buscavam o casamento, apressado, com as águas salgadas do mar.
O verde da paisagem entrava-nos na alma, vindo de todos os cantos. Do arvoredo que não acusava falta de rega e do rio que o reflectia, como sinfonia de acordes que nos emoldurava o espírito em dia de mais nada que fazer.
Aqui e ali, casas semeadas pela encosta, ruas serpenteantes que as uniam, solares com capelinhas que abençoavam as vinhas, fonte que ainda não secou, dando "petróleo" tinto e branco àquele povo. Mais pontes que ligavam gentes e terras do alto e do baixo Douro, pás de moinhos de vento, não para a farinha, mas tão-só para as novas energias arrancadas do cimo das montanhas que o deus Éolo, com a sua brutalidade, de quando em vez nos oferece.
O que mais encanta o viajante, contudo, como marca indelével, são as escadarias de pomares e vinhas, quais altares ao deus-natureza, fonte de subsistência de povos que teimosamente procuraram adaptar-se a circunstâncias adversas. Hoje, talvez poucos tivessem a coragem de ficar agarrados à terra-mãe, com tal tenacidade e paixão, a não ser que encontrassem pelo caminho outra Antónia Ferreira, a Ferreirinha, com artes de convencimento e de estímulo.
O Douro, rio e região, fica sempre na alma de quem o visita e o observa de perto, admirando a obra de Deus e de homens e mulheres determinados, que nos deixaram como herança a ter em conta a força e a importância do trabalho.

Fernando Martins

NOTA: Editado em 11  de setembro de 2008

Tempos que não voltam



Não sendo um nostálgico, aprecio fotografias de outros tempos. Tempos que não voltam, mas que me levam a recordar pessoas, paisagens, ambientes e formas de estar na vida. Disse que não sou nostálgico porque estou de bem com a vida que me é dado usufruir na meta final da minha existência, que só Deus saberá quando e em que circunstâncias será. 
Nesta fotografia está a Lita e três dos nossos filhos: Fernando, Pedro e Paulo, melhor dizendo, Fernando Manuel, António Pedro e João Paulo. A mais nova, a Aida Isabel, estaria em casa a nanar com uma empregada a olhar por ela, se é que já tinha nascido. E lá fomos ver a ria, com as Portas d’Água à vista. Não seria tempo de calor porque a roupa não o denuncia. 
Os passeios por longe, com filhos pequenos, não eram fáceis, mas aos domingos sempre se saía para umas voltinhas e para visitar a família pardilhoense, nomeadamente, as tias Zulmira e Aidinha. 
Desta paisagem, pouco ou nada resta. O Porto de Aveiro ocupou quase tudo em nome do progresso e da economia regional e nacional. Ficou como compensação o Jardim Oudinot, hoje considerado uma zona de lazer muito badalada, sobretudo na época do verão. E quando lá forem, procurem apreciar um bocadinho das Portas d’Água. 
Bom domingo.

Dia de Páscoa na Gafanha da Nazaré

Alguns apontamentos do meu diário

Folar à moda das Gafanhas

1. A Páscoa celebra, como é sabido, o grande mistério da nossa fé. Há um período, a Quaresma, que nos prepara para isso. Já no fim, o Tríduo Pascal congrega-nos intensamente para a vivência da paixão e morte de Jesus. Silêncio, meditação e oração, com jejuns, abstinências e partilhas, tornam mais expressiva a fé que de Deus no vem para em comunhão com todos construirmos um mundo melhor. Dir-se-á que esse propósito nos deve animar nos passos da nossa existência terrena. Para mim, a Páscoa é sempre uma mais-valia para o aprofundamento do meu envolvimento nos projetos da construção de uma sociedade mais fraterna, mais humanista. Por isso, valorizo de modo especial a festa maior do cristianismo. Maior, porque é da Ressurreição de Jesus Cristo que dimana a razão da nossa fé, dom de Deus ofertado a todos os homens e mulheres de boa vontade. Eu preciso da Páscoa. 

2. Fui educado desde menino para olhar a Quaresma como tempo de espera serena, de confiança absoluta na alegria que da Ressurreição nos vinha para nosso conforto espiritual. Era o tempo das confissões em massa, das orações pelas almas do purgatório, cantadas de porta em porta, com recolha de dádivas para mandar celebrar missas. Tempo sem festas populares e de maior atenção aos que sofriam no corpo e na alma. Também tempo dos folares feitos no fim-de-semana que antecedia o domingo de Páscoa. Folares para a família e para os afilhados de quem os tinha. Tantos ovos quantos os aniversários. É certo que em determinada altura não havia espaço para tanto ovo, mas também é verdade que há uns 70 anos se casava mais cedo. Os folares eram feitos com algumas liturgias e orações na hora de entrarem no forno. E depois de feitos, ficavam na gamela onde era feita a massa, cobertos por uma tolha. Comê-los, só no dia de Páscoa. Ao saírem do forno, lá vinha uma pequena prova de um folarinho feito do resto da massa que não chegou para mais um folar. Um bocadinho para cada um.

DIA DO PAI — O MEU PAI

O meu pai, em cima, à direita, de óculos, no dia do batizado do João Paulo, de quem foi padrinho
Dizem os calendários que hoje, 19 de março, se celebra o Dia do Pai. Pondo de lado as prédicas dos que dizem que estas celebrações não fazem sentido (eles lá saberão porquê), eu continuarei a respeitá-las e a valorizá-las, no sentido de me debruçar sobre a efeméride, ao menos nesta data, com mais ênfase. Mas insisto em dizer que todos os dias do ano tenho presente no meu espírito os meus pais, o meu irmão e outros familiares e amigos. E como crente, por eles rezo todas as manhãs, rogando a Deus que pela sua infinita misericórdia os mantenha no seu aconchego maternal, onde espero estar um dia, que não tardará muito,  pela ordem inexorável da vida.

O meu pai, Armando Lourenço Martins, mais conhecido por Armando Grilo, foi sempre um homem bom, sereno, acolhedor e incansável trabalhador. Não era homem de muitas falas nem de zangas, nem de guerras, nem de bisbilhotices. Honrado e extremamente poupado, comedido nas palavras e pessoa de fé. Quando vinha do mar, fazia questão de visitar o nosso prior, padre Guerra, a quem oferecia uma caldeirada e o tabaco a que tinha direito durante as pescas. E quando chegava a casa até dizia à minha mãe, que bem ouvi, que o nosso prior até o tinha confessado na sala, na altura da Páscoa.
Nunca me lembro de o ouvir criticar ou dizer mal fosse de quem fosse. Foi, por temperamento e formação, um homem responsável. Tenho para mim que as suas qualidades brotaram espontaneamente do facto de ter sido um menino-homem, porque entrou no mundo do trabalho, nas marinhas de sal, aos nove anos, e aos 15 já andava sobre as ondas do mar, na pesca do bacalhau. Naqueles tempos, não se falava de trabalho infantil e muito menos de escravatura. Falava-se, isso sim, da necessidade de sobreviver. Foi órfão de pai. Meu avô, Manuel Martins, morreu da diabetes, tinha o meu pai 12 anos. 
O meu pai, que me lembre, nunca teve férias. Enquanto marítimo, na pesca, só havia férias em caso de temporal. Em terra, nos dias de folga, trabalhava, incansavelmente, no quintal, porque gostava de ver tudo limpo e bem ordenado. Plantava árvores, semeava o que era normal, regava constantemente em épocas de seca e fumava constantemente o seu cigarrito de marca “Porto”, que os meus filhos lhe iam comprar quando já tinham pernas para correr… e tinham de ir mesmo a correr para terem direito a uns tostões para rebuçados. 
O meu pai morreu cedo, aos 61 anos, com um enfarte do miocárdio. Nunca o conheci doente. Resistiu cerca de um mês. E a sua morte fez dele o meu herói. 

Fernando Martins 

Gafanha da Nazaré - Arcadas para as festas

Nas festas da nossa paróquia (Nossa Senhora da Nazaré e Nossa Senhora da Conceição) não podiam faltar as arcadas bem alinhadas, na rua princ...