As tias da Lita

Aida, Zulmira e Lourdes, 
as Oliveiras de Pardilhó
Aida, Zulmira e Lourdes
Aida, Zulmira e Lourdes eram conhecidas em Pardilhó, Estarreja, pelas Oliveiras. Filhas de Manuel Válega e de Ana Oliveira, as duas primeiras nunca casaram e a terceira casou tarde com António Fonseca de Pinho. Não tiveram filhos, mas assumiram  a sobrinha Hélia como filha. A Hélia era filha de Ismael Válega de Oliveira e Silva e de Maria da Luz Almeida Ramos, mas nunca viveu com eles, por razões várias.  
A Aida, conhecida por Aidinha, morreu cedo, aos 61 anos, com problemas cardíacos, ao tempo de tratamento difícil. Sempre olhei para esta tia como se fosse, e era, realmente, uma santa na verdadeira aceção da palavra: Alegre, disponível, desprendida, generosa, amiga de toda a gente, atenta aos doentes e a quem sofria. Quando anunciávamos a visita semanal, desfazia-se em amabilidades, nunca faltando as guloseimas para as crianças, que tinham pela  tia Aidinha uma adoração especial. 
A do meio, a Zulmira, era a líder do grupo. Nada se fazia sem ela dar o seu sim… Discutia as nossas decisões até acertarmos o passo com as suas opções, quando possível. Como madrinha da Lita, tudo queria orientar, qual maestrina de quem a orquestra dependia. Justa consigo própria e com os demais, cumpria rigorosamente os preceitos religiosos em que fora educada. Tal como as outras tias, diga-se de passagem.
A Lourdes era comerciante nata. Tinha em Aveiro, na Avenida Lourenço Peixinho, uma loja de fazenda e roupa interior, denominada “Lourdes de Pardilhó”. Consigo colaborava o marido, ex-emigrante no Brasil. E foi também responsável pela educação da Lita, inscrevendo-a no Colégio do Sagrado Coração de Maria que ficava perto de casa. 
A Lita, contudo, ia todos os fins de semana a Pardilhó, onde era uma menina mimada. Aí, já sabia que tinha de ouvir as recomendações da madrinha, alinhando logo que possível com os mimos e brincadeiras da Aidinha. A Zulmira era a educadora; a Aida era a cúmplice das brincadeiras.
Os nossos filhos deliravam quando íamos a Pardilhó. No carro até cantavam felizes por saberem quanto eram amados pelas tias. Olhavam para a Zulmira como quem olha para uma chefe e para a Aida como uma amiga muito próxima, que tudo aceita com uma alegria esfuziante. 
Ainda hoje, passados tantos anos, os nossos filhos a recordam com muita saudade. Tal como nós.

Etnográfico da Gafanha da Nazaré — O ti Retinto

O amor às tradições

O ti Retinto ao centro
Parece que ainda o estou a ver, já com os muitos anos de vida a marcarem-lhe o rosto. O senhor Manuel Retinto, mais conhecido por ti Retinto, estava ali, no palco do salão paroquial, a ouvir a conversa. Não falava mas estava atento e sempre de sorriso nos olhos. O pessoal queria saber o que é que se dançava e cantava antigamente. E o ti Retinto a ouvir… calado. 
Um do lado questiona-o:
— Ó ti Retinto, mas afinal como era? 
— Era a Farrapeira… 
E começou a dizer a letra… e a malta a repetir 
— E a dança?
— Querem ver?
Vai daí, chama a ti Maria Sarabanda e foi uma alegria ver aquela gente a dançar e a cantar a valer. O ti Retinto já era outro.
Num desses ensaios, que decorriam pela noite fora, o autor destas linhas ficou encarregado de levar o tio Retinto a sua casa. Reparou então que ele transpirava por todos os poros, tal foi o esforço despendido a cantar e a dançar.
— Será que este esforço e o suor não lhe vão fazer mal? — perguntei.
— Não pense nisso! — respondeu prontamente. E acrescentou: 
— Quando chegar a casa, com um bagaço, fico pronto para outro ensaio.

NOTA: 
Hoje, ao arrumar papelada para arranjar espaço, encontrei esta e outras fotografia. A que publico aqui tem o seguinte registo: «O Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré nasceu nesta festa da Catequese de 1980/81. Como cantador, que se vê ao centro, o Tio Retinto.

Milagre Botânico

Roubaram-me a bicicleta 

O velho Esteiro Oudinot
A revista "Aveiro e o seu Distrito", que já não se publica, leva-me a visitá-la de quando em vez para ficar a saber um pouco mais da história da nossa região. No seu número 23/25 de 1977/1978, a ilustrar um texto, tem esta foto com a legenda que aqui deixo. Como curiosidade, há o facto de se reconhecer, há 38 anos, como milagre botânico, a existência de vegetação com água salgada por todos os lados. Isto concluo eu.
Por ali andei vezes sem conta para  apreciar o jardim. E pela estrada, que dá acesso ao Forte da Barra, andei a pé, de bicicleta e motorizada para apanhar a lancha que me levaria a São Jacinto, onde lecionei.
(...)
Costumava deixar a bicicleta encostada a um qualquer passeio, junto de muitas outras de trabalhadores do Estaleiro e da Base Aérea. Ninguém costumava mexer. Penso que não havia tantos ladrões como agora. Mas um dia, quando saltei da lancha, a dita bicicleta não estava no sítio em que a deixara. Roubaram-ma, disse para comigo. E comecei a caminhar pela estrada que ladeia o Esteiro Oudinot, rumo a casa.
De repente, um militar da Base passa por mim, em direção ao Forte, montado na minha bicicleta. Interpelei-o de imediato... e o rapaz lá confessou que precisara de ir a Aveiro. Julgava, dizia ele, que chegaria a tempo...
Pedi-lhe que se identificasse, o que ele fez muito humildemente, e eu disse-lhe quem era.  E  acrescentei que iria participar dele ao comando da Base. Disse isto só para ele medir o mal que tinha feito. Ele quase chorava... e eu fiquei com pena do rapaz.
Umas duas horas depois bate à minha porta alguém. Fui ver e era o rapaz com um sargento, que me suplicou que não participasse do militar, porque iria deixar a tropa por esses dias. Se eu avançasse com a queixa, não sairia tão cedo e certamente ficaria com a caderneta suja. É claro que os tranquilizei.

Visita Pascal na Gafanha da Nazaré


Vídeo de Humberto Rocha 

Ausente da Gafanha da Nazaré na semana da Páscoa, não pude receber, como é da tradição, a Visita Pascal. Confesso que senti a falta do grupo que anuncia a alegria de Cristo Ressuscitado, razão de ser da nossa fé. A vida, no entanto, gera estas situações. Contudo, não deixei de pensar na tradição que se inculcou no meu espírito desde que passei a registar os acontecimentos e vivências na minha memória, já lá vão uns 70 anos.
Nos meus tempos de menino e durante décadas a Visita Pascal era presidida pelo próprio prior, acompanhado de alguns adultos. Um levava a Cruz enfeitada com Jesus crucificado, outro a caldeirinha de água benta e um terceiro um cesto de razoáveis dimensões para recolher os ovos do folar destinado ao pároco. Quando o cesto ficava cheio, os ovos eram deixados em casa de um freguês, que se encarregava de no dia seguinte os entregar na residência paroquial. Algumas famílias ofereciam uns bolinhos com um cálice de Vinho do Porto e na hora do almoço (antigamente dizia-se jantar) havia mesa posta para uma refeição festiva, tradição que se mantinha de ano para ano. 
A Visita demorava o domingo, de manhã à noite, e continuava na segunda-feira e no domingo de pascoela. Mais tarde recorria-se a padres não párocos, para tudo se fazer mais rapidamente. As famílias, maioritariamente, abriam a porta da sala, onde o pároco aspergia os presentes com água benta, abençoando as pessoas presentes. O acompanhante do cesto recolhia os ovos.
Nesses tempos, os párocos recebiam para seu sustento a côngrua, um contributo das famílias em géneros agrícolas ou dinheiro, neste caso se não fossem agricultores. E ainda o folar da Páscoa. Os ovos eram vendidos a comerciantes já habituados a essas operações.
Com o crescimento demográfico, tornou-se impossível ao pároco visitar toda a gente, pelo que nasceu a ideia de organizar grupos que levassem a Boa Nova da Ressurreição aos paroquianos. Tudo ficou mais fácil. E os ovos passaram a ser substituídos por uma importância pecuniária. Os grupos preparam uns cânticos e oferecem uma pagela com uma oração alusiva, que todos rezam com as pessoas da casa. As famílias costumam assinalar o gosto de receber a Visita Pascal com uns verdes que colocam junto à porta de entrada. 
Os tempos, porém, vão perdendo estas tradições. Os católicos, embora em maioria, já não estão tão vinculados a estes gestos festivos e há muitos indiferentes, de outras religiões, emigrantes e ainda ateus a quem os atos de culto não dizem nada, como se compreende.

Dia do Pai

Uma evocação saudosa do meu pai



Não falta quem desdenhe da celebração do Dia do Pai, por razões que nem sempre compreendo. Lá vem, com desculpa primeira, a de que o Dia do Pai é quando o filho quiser, supostamente todos os dias. Mas a razão não encaixa bem, já que no dia a dia das nossas vidas, por tantas preocupações, nem sempre temos a oportunidade de olhar para os pais. Quando ele morre, a coisa muda de figura. Magicamente, ou talvez não, o Pai (e a Mãe, naturalmente) passam a ocupar um lugar cativo na nossa memória consciente. Todos os dias, por isso mesmo, a figura serena do meu Pai, uma vida inteira embarcado, e o olhar terno da minha mãe são presenças constantes na minha existência. Não exagero. 
Mas hoje é o Dia do Pai, do meu pai que se chamava Armando Lourenço Martins, mais conhecido por Armando Grilo. Homem simples, com um sorriso aberto constantemente para os filhos, cigarro “Porto” na ponta dos dedos, amarelecidos pela nicotina, ao que suponho, paciente, generoso e com uma capacidade enorme para aceitar sofrimentos. Na tristeza ficava calado, mas nunca acusava ninguém.  O seu gosto muito especial era ser prestável a quem a ele recorria. 
O meu Pai era um homem saudável, de mãos fortes e calosas de tantos anos de trabalho desde menino. Nunca gozou férias fora da sua casa. Quando muito, dava umas voltas ao quintal, visitava os netos diariamente, sempre... sempre a fumar. Vinha a minha casa ouvir e ver o telejornal. Punha os netos mais novos sentados nas suas pernas, fazendo-os saltar enquanto dizia que eram cavalinhos. 
Um dia queixou-se-me com uma dorzita no peito. Talvez de algum, esforço que tivesse feito, garantia. De noite a dor acentuou-se. Às três da manhã, o médico, vizinho, foi vê-lo. Não seria nada de grave.
No dia seguinte entrou na Casa de Saúde de Aveiro. E o homem saudável, sem qualquer doença conhecida, não resistiu a um enfarte. Uns 30 dias depois morreu.Tinha 61 anos. 
Evoco-o neste momento, como todos os dias. Mas hoje, por ser Dia do Pai, partilho esta memória com natural comoção. 

Fernando Martins                           

Eu sou deste tempo…

Guarita e salicórnia 
Velha Guarita

Eu sou deste tempo. Do tempo da velha Guarita ali perdida no meio de uma rua estreita, comprida e esburacada, marginal à laguna, que saía do Forte e chegava à Chave, na zona da EPA (Empresa de Pesca de Aveiro). Não sou nostálgico, ao ponto de dizer que tenho saudades desses tempos. Não tenho. 
A Guarita, que regista na foto a marca do abandono, assistia à azáfama do povo a apanhar recebolo, com foicinhas, para alimento dos suínos, cuja carne teria um sabor especial. Não confirmo nem desminto. 
Há anos encetei uma busca para tentar descobrir que planta seria o tal recebolo. Consultei dicionários, antigos e modernos, “sites” e até associações ligadas à Língua Portuguesa. Por fim, e nem sei como, também alguém da Universidade de Aveiro. Ninguém conhecia o recebolo.
Há anos, numa Feira do Sal, que se realizou em Aveiro, junto ao Mercado Manuel Firmino, entrevistei um proprietário do salgado da Figueira da Foz, que vendia salicórnia. Seria o tal recebolo? Parece-me que sim.

Entrevista:


Portas d'Água


Era por aqui, com este cenário à vista, que imensas vezes visitávamos a Ria de Aveiro. Não era a ria, mas a borda. Também por aqui andavam alguns lavradores que apanhavam o arrolado, algas e limos que a maré abandonava quando recolhia ao oceano. Os solos eram fertilizados sem grandes despesas, para além do trabalho dos interessados. E assim se transformaram areias movediças em solo produtivo. 
Frequentemente se apanhavam berbigões, amêijoas, mexilhões, lingueirão de canudo e burriés, sem que as autoridades marítimas nos inquietassem. A ria era livre e o povo abastecia-se quando queria. 
Há dias, em conversa com um amigo, antigo pescador desportivo, disse-lhe que em tempo de crise talvez fosse interessante voltar à nossa laguna, como quem vai passear. Logo ele retorquiu que não pensasse nisso, porque a legislação em vigor é difícil de satisfazer. É necessário licenças para tudo e mais alguma coisa. E as multas são pesadas. 
Há tempos, olhei para a ria em maré baixa e divisei ao longe uma grande azáfama na apanha de berbigões, ao que julgo. Assumiram o risco ou teriam mesmo em dia as licença de que se fala? Não sei, mas talvez gostassem de sentir o prazer de caminhar no areal da ria, como quem passeia pelas ruas e jardins da nossa terra.

Egas Moniz na estação do Porto

  Quando vou ao Porto, a capital do Norte, lembro-me com frequência dos painéis que decoram a sala de entrada da Estação Ferroviária. Nunca ...