O JOGO DA "MACACA"

A Deolinda veio de Fafe para a nossa terra em 1955. Tinha 11 anos e como habilitações possuía a 4.ª classe. Também já tinha feito a Profissão de Fé. Quando chegou, foi trabalhar com as irmãs, Maria da Luz e Ilda, para a seca do Milena. Na Cale da Vila. Como ela, assim menina, havia outras. Na altura não se reparava no trabalho infantil.
A Deolinda não teria verdadeiramente a noção do trabalho, mas sentia que tinha de ajudar a família. A primeira tarefa que lhe deram resumia-se a guardar o bacalhau que secava pendurado nas redes da vedação da seca, não fosse algum transeunte tentar-se e sacar algum peixe ainda não completamente seco. Outro era estendido nas mesas de arame.
O tempo ali especada a olhar custava a passar. Vai daí, começou, para se entreter, a jogar “à macaca”, um jogo muito habitual naqueles tempos entre a criançada. E assim ganhava a vida. «Os patrões eram amigos e boas pessoas», confidenciou-me.
Depois, estendeu bacalhau pelas mesas e ao fim do dia de sol recolhia-o até à manhã seguinte, se a temperatura fosse adequada e se houvesse vento. Saltou a seguir para as tinas, onde se lavava o peixe mais consumido pelos portugueses naquela época. Era miúda e mal conseguia esfregar o fiel amigo. Não ganhava tanto como as mulheres, mas já nem recorda o preço da jorna. Era de facto pequena, a Deolinda. Mas uma irmã, mais crescida e mais sabida, apressa-se a sugerir-lhe, para se assemelhar às adultas, ganhando como tal:
— Estica-te, Deolinda, para pareceres uma mulher!


A MELHOR PRENDA DE NATAL


O Albano acordou na segunda-feira com o firme propósito de resolver de uma vez por todas o problema das prendas de Natal. Todos os anos sentia o mesmo dilema, sem saber o que oferecer na noite de consoada aos seus familiares. A esposa, essa sim, tinha jeito para essas coisas. Sempre estava mais disponível e não tinha preocupações que a incomodassem. O Albano era diferente. A empresa ocupava-o todos os momentos dos dias, ou não o obrigassem a isso a crise económica que domina o país e alguns conflitos com um ou outro trabalhador, que há sempre quem esteja insatisfeito com o ordenado que recebe. Por isso, escasseava-lhe o tempo para pensar em prendas. Mas o Natal ainda o motivava para se mostrar generoso com quem mais o ajudava nos negócios e com os familiares mais próximos. Restos de uma educação cristã que havia recebido em criança e do ambiente solidário que a época natalícia propicia.
As prendas dos mais diretos colaboradores eram fáceis de encontrar. Mais uns dinheiros para além do subsídio do Natal e do habitual salário mensal, e não era nada mau. Assim, receber três meses de uma só vez sempre será muito bom para que os trabalhadores bem comportados possam passar esta quadra mais folgadamente.

SOPAS DE MIGALHAS DE BOROA COM CAFÉ

Da minha meninice recordo os dramas da segunda guerra mundial, também chamada guerra de 1939-1945, período durante a qual decorreu. Portugal ficou na chamada posição neutral, ora negociando com uns ora com outros. Não entrámos na guerra com armas e soldados, mas sofremos as consequências que uma qualquer guerra provoca nas sociedades.
Era eu menino, mas já sabia que por causa dela havia fome entre as camadas populacionais mais pobres. Das classes consideradas mais baixas, sob o ponto de vista social, os lavradores eram, apesar de tudo, os que menos fome sofriam, mas nem assim deixavam a situação de vida modestíssima, andando, normalmente, durante o dia a dia de trabalho nos campos, descalços e pobremente vestidos. Fato de fazenda e bem passado a ferro, só para ir à missa, que logo era despido e arrumado, porque tinha de durar anos e anos.

SEM O PÃO DA CONSOADA


A tarde de inverno, de nuvens carregadas a ameaçarem chuva, era propícia a recordações. À memória do Jorge Torpedo veio o filme de uma vida em bolandas, depois de se afastar da família por razões que nunca soube nem procurou explicar. Trabalhou nas marinhas do sal em Alcácer, foi estivador em Lisboa, tratou de animais num circo em Itália, labutou de sol a sol nas colheitas em França e Espanha e estava há uns anitos no Alentejo, numa herdade com horizontes a perder de vista. Ao seu redor e à sua guarda, gado e mais gado, tratores e outras máquinas agrícolas, que sabia manobrar e cuidar. Para o gado tinha atenções redobradas, não fosse aparecer por ali, como quem não quer a coisa, um qualquer ladrão, disposto, com a sua trupe, a carregar depressa qualquer animal que lhe surgisse mais à mão. 
Jorge Torpedo, conhecido pela sua força descomunal, de onde lhe veio o apelido, já conhecera muitos patrões, uns de encontros quase diários e outros de nome. Alguns foram suficientemente espertos para explorar a sua qualidade de homem valente, bem apoiado em músculos possantes que pareciam rebentar-lhe a camisa. Mas o Jorge não fazia gala da fama e do proveito da sua valentia, antes parecia e era pessoa capaz de se deixar vencer por uma qualquer ternura ou olhar amigo. Por índole, não fazia mal a uma mosca e nem sequer pressentia qualquer maldade nas pessoas com quem lidava e com quem se cruzava.


O REGRESSO DO IRMÃO PRÓDIGO

Nas vésperas da noite de consoada falta sempre qualquer coisa mais ou menos importante para a festa da família, associada, há muito, ao nascimento de Jesus. Prendas, sobretudo. Porque não se contava com a visita de um familiar, porque as destinadas ao filho mais velho ou mais novo não se coadunavam, afinal, com os seus desejos ditos em jeito de brincadeira, porque a filha precisava de algo diferente para decorar a sala.
Não cultivo muito o gosto de fazer compras, exceto de livros, mas acompanhei uma familiar pelas lojas mais na moda ou mais agressivas na publicidade aos seus produtos. Essa minha pouca apetência pelas compras não foi fruto de uma qualquer catequese mal alinhavada, que leva à conta de puro consumismo tudo o que diz respeito a dar lembranças em datas marcantes das nossas vidas, mas, sim, a uma inexplicável falta de habilidade. As prendas, no fundo, e em especial as de Natal e Páscoa, são normalmente sinais dos nossos afetos e do nosso amor para quantos nos rodeiam. Por isso, até foi com satisfação que acompanhei, também com a minha opinião, as últimas aquisições para a noite de consoada.

MARIA DO CÉU

Com os anos a pesarem, a varredora arrasta-se no seu labor mecanizado na busca das folhas caídas do arvoredo. Empregada da empresa encarregada do asseio citadino, vejo-a com frequência da esplanada do bar onde matinalmente costumo saborear o café de mistura com o ar puro que o parque me oferece. A mulher deambula de um lado para o outro indiferente aos olhares de quem está ou passa. Baixa-se com dificuldade, puxa com as poucas forças que lhe restam o saco preto de plástico semicheio de lixo, ergue-o a custo para o despejar no carro de mão e volta à cata de mais folhas, mas também de papéis atirados para o chão por gente graúda e miúda que corre apressada, sem cuidar de saber das recomendações que periodicamente se badalam para haver respeito pela limpeza do ambiente, que é casa de todos.
De quando em vez, o capataz lá aparece para dar as suas ordens: — Olhe ali; quero isto limpinho como um brinco; não quero queixas de quem paga!
Maria do Céu, assim se chama a mulher que me prende a atenção e os sentimentos nascidos à sombra de quem sofre e luta, obedece apressada sem mostrar enfado, num gesto mecânico de quem está habituada a cumprir ordens. 

O MEU SÓTÃO

Máquina de costura antiga.  Em baixo um ninho da gata 

Um sótão que se preze é sempre uma preciosa inspiração de estórias. O meu não foge à regra. Não tem sido meu hábito subir, o que não acontece com a minha Lita, que tem lá a morar as nossas gatas, mãe e filha, a Bijú e a Guti, que trata como se pessoas da família fossem. Alimentação sadia e adequada, higiene diária e companhia exigida por elas. Se a Lita demora, elas encarregam-se de a avisar.
No sótão há de tudo: Livros e revistas considerados pouco necessários, cassetes e CD ultrapassados pelas novas tecnologias, os ninhos das gatas para diversos gostos e temperaturas, um rádio com uns 60 anos, uma TV à espera de quem a considere um mono sem qualquer préstimo, cadeiras, sofá, um lavatório da avó da Lita, uma máquina de costura antiga de fazer ponto ajour, fotografias de filhos meninos e adolescentes, entre mais umas coisas, que não conseguimos despachar para o lixo, um emblema do Sporting, alto-relevo, que resiste a umas seis décadas, oferecido por um amigo que hoje me trouxe gratas recordações para contar um dia destes.
Tendo tantos motivos para visitar frequentemente o meu sótão, por que razão o ignorava? Ia a correr e a correr descia sem olhar para o que por ali está com tantas estórias para tão interessantes evocações.
Mas agora está a ser diferente: Convenci-me que tenho de fazer exercício físico e a bicicleta, que há tempos foi atirada também para o sótão por falta de uso, voltou à vida. Graças à minha decisão, claro.

Egas Moniz na estação do Porto

  Quando vou ao Porto, a capital do Norte, lembro-me com frequência dos painéis que decoram a sala de entrada da Estação Ferroviária. Nunca ...