Subsídios para a história das mulheres da Gafanha



Mulheres da Seca do Egas 

As mulheres da Gafanha merecem um estudo profundo sobre o seu papel na construção das povoações e das comunidades desta região banhada pela Ria de Aveiro. É certo que alguns estudiosos e escritores de renome já se debruçaram sobre elas, cantando loas à sua tenacidade e coragem, mas também ao seu esforço, desde sempre indispensáveis na luta de transformação de areias improdutivas em solo ubérrimo. Há décadas, e é sobre essas mulheres que nos debruçamos, elas eram as mães solícitas e amorosas dos filhos, mas também os “pais” que garantiam o sustento da casa, enquanto os maridos se aventuravam nas ondas do mar na busca de mais algum dinheiro que escasseava em terra. 
Em jeito de desafio a quantos podem e devem, pelos seus estudos e graus académicos, retratar as nossas avós, com rigor histórico, já que, hoje e aqui, não há lugar nem tempo para isso, apenas indicamos algumas pistas, que há mais de 50 anos nos foram oferecidas por Maria Lamas, na célebre obra “As mulheres do meu país”, que viu há pouco a luz do dia em 2ª edição, numa iniciativa da “CAMINHO”, e que tão esquecida tem andado.


Na década de quarenta do século passado, Maria Lamas, que faleceu em 1983, com a bonita idade de 90 anos, andou pelas Gafanhas, mais concretamente pela Gafanha da Nazaré, olhando, conversando, retratando e estudando as nossas avós. “O esforço da mulher na labuta comum e a sua influência no desenvolvimento da Gafanha são apontados, em toda a região de Aveiro, como um exemplo admirável”, afirma a escritora, depois de se referir, a traços rápidos, à localização da região que estudava, e de citar as areias e os ventos, as marés e a vegetação, as batatas e os cereais, as salineiras e as pescadeiras, as trabalhadoras das secas do bacalhau. E foram, sobretudo estas, as mulheres das secas, as que mais a entusiasmaram, ou não fossem elas o exemplo claro da camponesa e da operária na mesma pessoa. 
“A seca do bacalhau na Gafanha emprega muitas centenas de mulheres, durante parte do ano, havendo secas onde o trabalho é permanente, porque abrange duas campanhas, a dos lugres e a dos arrastões.
“Na referência a esta actividade feminina focaremos em especial a Gafanha, visto ser ali que ela atinge o maior desenvolvimento, como é também ali que existem as mais importantes secas do bacalhau de todo o País.” Assim escreve Maria Lamas, que acrescenta: “Pelos costumes e ambiente em que vivem e ainda porque tanto se entregam à lavoura como à faina da seca ou qualquer outra que se lhes proporcione, elas conservam, sob certos aspectos, a mentalidade da mulher do campo; mas a disciplina das tarefas realizadas em comum ou distribuídas numa coordenação de actividades, o sentido das responsabilidade, os horários fixos e ainda o contacto com outras realidades directamente ligadas ao seu próprio esforço vão-lhes dando uma noção diferente da vida e criando consciência da importância do seu labor.”
A escritora que andou pela nossa região recorda a maneira de viver das mulheres da Gafanha, com a sua “ignorância”, o conceito de “fatalismo, a que subordinam o seu destino”, mas também o instinto de “defesa dos seus interesses”, tornando-as “solidárias”. 
“No vestuário revelam maior cuidado na limpeza do que as camponesas, que saltam da enxerga, estremunhadas, antes do luzir do dia, e lá vão, para a labuta sem fim, indiferentes à água, ao sabão, ao pente...
“Não se imagine, porém, que as mulheres do povo, naquelas circunstâncias, têm uma vida mais leve e fácil, em relação às suas irmãs que permanecem em contacto permanente com a terra. Com muito poucas excepções, elas fazem longos percursos, de manhã e à tarde, porque moram longe do local onde trabalham. Também, de uma forma geral, todas aproveitam algumas horas que lhes fiquem livres para ajudar na modesta faina agrícola da família, seja regar o milho, ir ao mato e à lenha ou tratar dos animais.
“A sua vantagem não está no aligeiramento das tarefas, mas sim na mudança do ambiente, na variedade dos assuntos que lhes prendem a atenção e no convívio com as companheiras.”
Assim – sublinha Maria Lamas –, as mulheres das secas do bacalhau são “desembaraçadas, faladoras e alegres, como se a vida lhes não pesasse. Em conjunto, nas horas de plena actividade, cantando em coro ou simplesmente escutando os programas de rádio, que um amplificador de som leva a todos os recantos das instalações onde trabalham [EPA – Empresa de Pesca de Aveiro], elas constituem um quadro pleno de vitalidade e optimismo”.
Refere, depois, o que é o trabalho árduo destas mulheres, desde descarregar, lavar, salgar e levar o bacalhau, todos os dias, para as “mesas” da seca, para depois, mais tarde, empilhar, seleccionar e enfardar. Diz que elas andavam muitas vezes descalças, “apesar do perigo constante de se ferirem, com as espinhas e barbatanas que se encontram espalhadas pelo chão”. E acrescenta que uma ou outra consegue arranjar botas de borracha, “presente do irmão ou noivo que foi aos bancos da Terra Nova”, sublinhando que estas “são consideradas, pelas colegas, como privilegiadas”.
“Há ainda aquelas que improvisam uma espécie de sandálias de madeira, amarrando uma ‘sola’ ao pé, com farrapos. São também raras excepções. A regra comum é o pé descalço, porque nenhum calçado duraria tempo que valesse a pena, além de que, não sendo impermeável, nem sequer evitaria que os pés estivessem sempre molhados”, pode ler-se no texto que estamos a seguir e do qual transcrevemos as partes mais significativas, na nossa óptica.
Depois frisa os canos, que mais não eram do que “meias sem pés”, os baixos salários, “doze a quinze escudos diários”, e apresenta a mulher que as dirige, a Senhora Júlia, que os gafanhões mais antigos bem recordam. Diz Maria Lamas, entre outras considerações, que desempenhava o seu cargo “com firmeza” e que se distinguia das suas subordinadas pelo aspecto, “porque se veste e penteia de maneira mais apurada”.
No entanto, “conserva o ar desembaraçado e decidido que caracteriza as mulheres do povo daquela região”. E adianta: “O que interessa especialmente neste caso é o facto de ela ter conseguido, pelas suas qualidades de trabalho e disciplina, ascender ao lugar de encarregada, com enormes responsabilidades, numa empresa importante.”
Noutra passagem do livro, canta um hino a estas mulheres, cujas histórias decerto muito a sensibilizaram, hino esse que aqui transcrevemos: “Mulheres da Gafanha, à hora em que vão levar o almoço aos homens que trabalham nos estaleiros. A vida duríssima que levam, naquelas terras que outrora foram dunas batidas rijamente pelo mar e que são hoje solo fertilíssimo devido ao seu labor constante, marca-lhes as feições e dá-lhes um todo viril, decidido, forte. Nenhuma tarefa as faz recuar. São, quase todas, mulheres de pescadores de bacalhau ou de operários, e elas próprias trabalham no que se lhes proporciona, quando não é preciso sachar o milho ou colher a batata, muito abundante ali. A sua existência passa-se em permanentes fadigas e sobressaltos. Usam uma linguagem desabrida, que chega a ser chocante, porque se habituaram a encarar a vida e as pessoas de forma hostil, à força de lutar e sofrer de muitos modos. Tudo se resume, porém, a um desabafo, tão natural, para elas, como respirar, rir ou falar. Bravas mulheres, as da Gafanha! No fundo, todas as mulheres do povo se parecem umas com as outras, vivam onde viverem. Pode variar o aspecto exterior, mas a sua natureza é a mesma. Mais ou menos rudes, conforme o seu nível de vida, todas são irmãs na luta, na resistência ao trabalho e ao sofrimento, no heroísmo obscuro com que suportam o peso de uma existência sujeita às suas inclemências. Instintivas e directas, na sua maneira de encarar as realidades, não podem ser julgadas apenas pelo que fazem e dizem. A força que as impele tem raízes fundas, na terra e na própria vida.”
Mais adiante, tece algumas considerações sobre as raparigas da Gafanha, sublinhando: “Estas jovens do povo parece que se vão distanciando, no trajar e nos gostos, das suas mães. Trabalham na terra, quando a faina da seca termina, mas quando vão à cidade apresentam-se vestidas como se lá vivessem. Gostam de ir ao cinema, se têm ocasião para isso; discutem o ‘que se usa’; são raras, porém, as que mostram interesse pela leitura. Casam, quase sempre, com operários dos estaleiros ou pescadores de bacalhau. Depois de casadas perdem muito da sua vivacidade e até o gosto na sua pessoa – a não ser uma ou outra de personalidade mais definida. A pouco e pouco vão seguindo o caminho das outras mulheres que, antes delas, foram novas, engraçadas e um tanto rebeldes contra o pensar das mães. Insensivelmente, adaptam-se à vida sacrificada, em que tudo é trabalho, sobressaltos e luta pelo pão. Mesmo quando conseguem certo desafogo económico, o espírito mantém-se-lhes embotado e alheio ao progresso do Mundo, fora dos seus interesses pessoais e imediatos.”

Fernando Martins

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