Evocando D. Júlio Tavares Rebimbas


Nas vésperas da sua nomeação para ser ordenado bispo, encontrei-o em Fátima, no café mais frequentado, o tal que fazia e faz esquina com duas ruas. Era agosto de 1965 e eu andava por ali em lua de mel com minha esposa. Ele estava com o Padre João Paulo da Graça Ramos que viria a ser seu secretário, ao que julgo. 
O nosso conhecimento devia-se ao facto de eu ser da Ação Católica e gafanhão, e ele prior de Ílhavo. Nessa altura, Mons. Júlio Rebimbas era Vigário-geral da Diocese de Aveiro. 
Estávamos na conversa e nesse ínterim chega um indivíduo amigo do Padre João Paulo que fez as apresentações devidas, esclarecendo: 
— Mons. Júlio Rebimbas é o Vigário-geral da Diocese de Aveiro. 
De imediato, Mons. adianta: 
— Calma, sou o prior de Ílhavo.

Regressámos da lua de mel e dias depois, qual não foi o meu espanto, noticiava um diário que Mons. Júlio tinha sido nomeado Bispo do Algarve. É claro que antes da nomeação se refugiou, decerto para meditar, em Fátima, Não estaria ali para outra coisa, julgo eu.
Guardo dele o bom humor, a graça no falar, o jeito para criar amizades e a proximidade que cultivava com todos, em especial com os mais simples.

D. Domingos da Apresentação faleceu há 54 anos

Evocando o primeiro bispo 
com quem falei

Tendo sido Bispo Auxiliar de D. João Evangelista durante cinco anos, após o seu falecimento foi nomeado Bispo Residencial de Aveiro em 11 de Agosto de 1958. Dele disse, D. João, quando, como Bispo Auxiliar, D. Domingos chegou à nossa Diocese: «Tu serás a luz dos meus olhos, ó doce irmão, tu serás, ó forte amparo, o báculo da minha velhice.» 
D. Domingos, na sua primeira carta pastoral, define como prioridades para o seu trabalho «os problemas do clero, do apostolado, da caridade e da educação cristã». Promove o apostolado dos leigos, com base nas estruturas da Ação Católica e da Catequese, ao mesmo tempo que incentiva a formação dos catequistas.
Dele guardo recordações da minha participação nas Semana de Estudos Pastorais, destinadas a sacerdotes e leigos, e da sua intervenção pastoral que o levava a visitar, quantas vezes inesperadamente, as paróquias carecidas do seu estímulo e da sua presença, qual pai atento às dificuldades dos seus filhos.

Memória de um Cortejo dos Reis

(Foto dos meus arquivos)

O Cortejo dos Reis, ano a ano repetido, leva-me a experimentar a proximidade com as pessoas, muitas delas envolvidas na vivência desta antiga e sempre renovada tradição. A festa do Cortejo dos Reis proporciona-me a oportunidade de voltar aos tempos em que eu, menino, com meu irmão, mais novo três anos, participei no Cortejo dos Reis, de uma ponta à outra, cada um com a sua cana às costas. Na ponta da cana lá ia a prenda para o Menino Jesus. Não consigo recordar toda a pequena carga, mas dela fazia parte um chouriço, um pequeno bacalhau, umas laranjas e nem sei que mais. Mas também é verdade que os nossos frágeis ombros não suportariam muito mais. 
O meu pai levou-nos até Remelha, de bicicleta, como era hábito na altura, entregando-nos ao cuidado de pessoa sua conhecida. Ainda me lembro de ouvir a minha mãe dizer que estaríamos assim a pagar uma sua promessa, coisa que não compreendi. Mas se ela dizia que tínhamos de ir no Cortejo, não haveria razões para discordar.
Recordo-me, com que saudade, de que, mal o cortejo chegou à igreja, eu e o meu irmão corremos para casa com os presentes ao ombro. Estava terminada a promessa. Quando entrámos na cozinha, os meus pais ficaram admirados e logo nos questionaram:
— Então não entregaram os presentes ao Menino Jesus, como vos recomendámos? O meu pai sorria como só ele sabia sorrir… 
Respondemos com o silêncio.
A minha mãe, mulher prática, resolveu a situação.
— Vai lá, Armando, e paga os presentes.
E assim foi. Mas como entender que tínhamos de entregar os presentes à comissão organizadora, se não conhecíamos ninguém? 
Afinal, as tradições são sempre excelentes motivos para reconstruirmos as nossas histórias de vida, por mais humildes que sejam.

Fernando Martins

Uns matraquilhos para os meus filhos

O Menino Jesus viria de madrugada

matraquilhos para crianças - Pesquisa Google:


Já lá vão muitos anos, mas o Natal desse tempo distante ficou-me na memória para sempre. Quando comprei em Ovar um bilhar de matraquilhos, à medida das idades dos meus filhos, resistente quanto baste, imaginei-os manhã cedo a correr para junto do fogão de sala, onde haviam deixado os sapatitos. O Menino Jesus viria de madrugada, segundo a tradição, para deixar, sorrateiramente, as prendas natalícias. Era cena intrigante para eles, decerto para todas as crianças, porque a chaminé, por onde teria de passar, estaria cheia de cinza. Mas os pais lá contornavam, delicadamente, o problema apoiados na certeza de que o Menino, que era Deus, nunca sairia sujo por causa da sua generosidade para com todos, em especial para quem se portasse bem. E estas histórias, que muitos julgam ridículas, não deixariam de ser, e ainda são, arte pedagógica enriquecedora do imaginário infantil, intrínseco à formação integral do ser humano

Francisco Zambujal: Um amigo que nunca esqueci



Vi hoje (29 de maio de 2008) na RTP, no Programa Praça da Alegria, o jornalista e escritor Mário Zambujal, que me trouxe à memória o seu saudoso irmão e meu colega e amigo, Francisco Zambujal. O Francisco morreu novo, deixando a arte mais pobre. Convivi com ele, há muitos anos, em lides de animação cultural, ao serviço da Educação Permanente do Ministério da Educação, ao tempo dirigido por Veiga Simão.
O Francisco Zambujal era um caricaturista nato e com uma sensibilidade tão grande, que o jornal A Bola logo soube aproveitar, convidando-o para seu colaborador habitual. Os craques da bola, e não só, mostravam, graças ao artista, uma nova vida, uma dinâmica diferente, suscitando um outro olhar sobre o “retratado”.
Quando nos encontrávamos em tarefas de formação ou programação, era certo e sabido que a minha caricatura, minutos depois, já andava de mão em mão, provocando sorrisos encomiásticos. Era sempre o primeiro caricaturado. Um dia perguntei-lhe, por curiosidade, o porquê dessa sua preferência pela minha pessoa. Respondeu-me, de pronto, o Francisco: “A tua careca desafia-me e presta-se muito para a caricatura." E continuou com outros considerandos ao meu estilo pessoal. 
Das diversas caricaturas que ele me fez, no caderno em que tomava apontamentos dos assuntos abordados, encontrei uma, há anos, entre a minha papelada. Aqui a deixo, como homenagem ao amigo que nunca esqueci.

FM

Evocando um gafanhão: Josué Ribau

Josué Ribau


No meio de tantas ruas batizadas com nomes de pessoas que pouco ou nada nos dizem, de vez em quando lá encontramos uma ou outra com nome de gente nossa. Neste capítulo, embora seja difícil selecionar os que merecem tal honra, pensamos que se devia ter em conta que houve gafanhões dignos de ocuparem placas toponímicas. Como o Dr. Josué Ribau, que hoje e aqui evocamos.
A rua com o seu nome liga a Av. José Estêvão à Rua Sacadura Cabral. Quem segue pela Avenida em direcção ao Forte da Barra, depois da igreja matriz, surge à direita, depois dos semáforos, uma segunda rua, a dedicada ao nosso homenageado. Trata-se de uma rua estreita, algo sinuosa, por ter nascido sobre um caminho de terra batida, sem traçado prévio.
Josué da Cruz Ribau nasceu no dia 1 de Abril de 1916. Hoje, se fosse vivo, teria 99 anos de idade. Era filho de Manuel Ribau Novo e de Maria da Cruz, esta de Seixo de Mira, sendo irmão de Madalena e do padre Diamantino. Faleceu em 27 de Maio de 1944.
Fez a instrução primária na Gafanha da Nazaré e estudou no Liceu de Aveiro. Foi bom aluno, como reza a tradição e salienta a família, ingressando depois na Universidade de Coimbra, onde se licenciou em Matemática.

Conto de Natal

  O AMÉRICO 


De sorriso largo a emoldurar-lhe o rosto gasto pelos anos e cansado de tanto trabalho e canseiras, de chapéu a bailar-lhe nas mãos calejadas pela luta do dia a dia, de gravata garrida sobre a camisa branca, de sapatos polidos e fato completo, vinha desejar-me bom Natal, tantos anos depois de nos termos conhecido. Os anos passam, mas as amizades, nem sempre manifestadas por tantos motivos, perduram. Era o caso. 
O Américo tinha saudades de alguns momentos vividos e sentidos em comum. Vinha da estranja, para onde fora em hora de mudar de vida. Era a terceira tentativa, depois de ter desistido da mina que lhe roubou a saúde e nunca lhe matou a fome. 
Quando o conheci, tinha trinta e poucos anos, filhos seguidinhos, pele enrugada e olhos encovados pela escuridão do poço, parecia na casa dos cinquenta. 
— Tenho cara disso, mas estou muito longe. E olhe, também é por causa disso que quero fugir da mina. 
Trabalhava horas a fio, em condições sub-humanas, com o pó negro do carvão a corroer-lhe os pulmões. Mal alimentado, como sina de todos os mais pobres, sentia a vida a escapar-lhe a olhos vistos. E a mulher e os filhos? Ela não podia trabalhar fora de casa. Assim lho pediam as crianças, todas a precisarem dos cuidados maternos. 
— Cheguei a apanhar fruta dos quintais alheios para matar a maldita fome que me atormentava. E não havia por ali outros trabalhos onde pudesse ganhar o mínimo para sustentar a família. 
E sonhou. Sonhou com terras de progresso e de trabalho a rodos para todos. Onde os operários ganhassem o correspondente ao suor gasto. Não importava os esforços que lhe exigissem. O que importava é que tivesse o necessário. Tentou a França. Clandestino como tantos, há décadas. Preso na “viagem”, pelos vizinhos espanhóis, passou das boas, longe dos seus e sem ninguém que o ajudasse. 
Depois da prisão e da condenação suspensa, foi o mar que o atraiu porque “sempre devia haver mais trabalhos” para quem nunca regateou canseiras.

Cantigas de antigamente

Padre Rezende 

FADO

Com a minha mão direita
fiz uma cova no chão,
Para enterrar os meus olhos
que tão desgraçados são.

O biscoito era torto,
Eu mandei-o escavacar,.
Olha o dialho do biscoito,
Deu lenha pra se queimar.

Rato muito ratão
Um rodovalho roía, 
A Rita Rosa Ramalha
Do roer do rato ria.

Venho de amar a Jacinta,
de apanhar cevada à mão.
Minha mãe era Jacinta
meu pai era Jacintão.

Uma vez matei um porco,
Salguei-o numa maquia,
Deixei-lhe o rabo de fora
Porque dentro não cabia.

Oh! Costa-Nova-do-Prado
e pedras do paredão,
Palheiros de S. Jacinto
Onde os meus amores estão.

Oh! igreja da Murtosa
feita de pedra morena.
Dentro dela ouço missa,
Oh! olhos!... que me condena.

Rezo da minha janela
À Senhora das Areias,
Que me traga o meu amor
Que anda por terras alheias.

Adeus Senhora da Nazaré,
Adeus Carmo mais ao sul,
Adeus Senhora da Saúde
E a Encarnação mais ao pé.


In “Monografia da Gafanha” 
do Padre João Vieira Rezende

Uma memória para os fumadores

Hospital dos Covões

Em 2006 estive hospitalizado duas vezes. A primeira num hospital coimbrão e a segunda no Hospital Infante D. Pedro. Em ambos fui muito bem acolhido e tratado. Nunca me cansei de dizer isto, porque há muito o hábito de se criticarem, por isto ou por aquilo, os serviços hospitalares.
Num desses internamentos, a minha enfermaria estava relativamente perto de uma outra destinada a doentes pulmonares. Nas minhas caminhadas, de que necessitava para desentorpecer as pernas, passava por ali frequentemente. Havia, num ou noutro corredor, dísticos a proibir o fumo. Nem assim, porém, faltava quem se refugiasse num ou noutro recanto, para fumar um cigarrito, às escondidas dos médicos e enfermeiros.
Numa das minhas caminhadas cruzei-me, certo dia, com um senhor simpático e de palavra fácil, que me saudou em jeito de despedida. Realmente, estava de partida, depois de uma operação a um pulmão.
Conversa puxa conversa, fiquei a saber do que sofria. Cancro nos pulmões. Esta era já a segunda intervenção cirúrgica a que se sujeitara. Estava de regresso a casa. Adiantei, então, que estava com muito bom aspeto, desejando-lhe rápido restabelecimento. De pronto, respondeu-me:
— Olhe, meu amigo, o que importa é que estou aqui; sinto-me bem, mas não tenho ilusões; se soubesse o que sei hoje, talvez nada disto me teria acontecido.
E continuou, com ênfase, a contar a sua história:

Conversas ao sabor da maré


A vida é um dom permanente, que nem sempre sabemos apreciar e valorizar. Raramente nos apercebemos disso, mas é dom por tudo quanto dela nos vem. 
Ausente uns dias, não muito longe, que viagens cansam, o regresso foi rápido, quase ao cair da noite. A habitual sensação do retorno ao sítio em que criei  raízes profundas e duradouras.
Manhã cedo, que os dias são mais curtos, o erguer foi imposto por visitas programadas. Aqui, nas ruas que me são familiares, encontrei em cada esquina uma voz próxima, uma saudação amiga. E ouvi histórias, e soube de gestos já natalinos, e compreendi projetos solidários, e cruzei-me com amigos de longa data.
A nossa terra é sempre a terra que nos realiza como pessoas de partilha de sentimentos e emoções, de trabalhos e canseiras, de lutas benfazejas, de alegrias mais sonoras, de gestos mais emotivos.
Com a passagem dos anos, fixo mais os rostos e sorrisos das pessoas do que os seus nomes. Por vezes é a voz que torna presente os nomes, normalmente acompanhados de histórias de vida comuns. E então, é por aí que revivo acontecimentos de décadas, quantas vezes de ações solidárias em prol da comunidade e de pessoas.
Embora mais dado ao aconchego da minha casa e nela aos meus recantos de leitura, escrita e música, prazeres que me enchem a alma e me inspiram a alegria de viver, começo, quiçá tardiamente, a valorizar os encontros ocasionais nas ruas da nossa terra. Vou tentar sair mais, na esperança de me enriquecer com as conversas ao sabor da maré.

Egas Moniz na estação do Porto

  Quando vou ao Porto, a capital do Norte, lembro-me com frequência dos painéis que decoram a sala de entrada da Estação Ferroviária. Nunca ...