O REGRESSO DO IRMÃO PRÓDIGO

Nas vésperas da noite de consoada falta sempre qualquer coisa mais ou menos importante para a festa da família, associada, há muito, ao nascimento de Jesus. Prendas, sobretudo. Porque não se contava com a visita de um familiar, porque as destinadas ao filho mais velho ou mais novo não se coadunavam, afinal, com os seus desejos ditos em jeito de brincadeira, porque a filha precisava de algo diferente para decorar a sala.
Não cultivo muito o gosto de fazer compras, exceto de livros, mas acompanhei uma familiar pelas lojas mais na moda ou mais agressivas na publicidade aos seus produtos. Essa minha pouca apetência pelas compras não foi fruto de uma qualquer catequese mal alinhavada, que leva à conta de puro consumismo tudo o que diz respeito a dar lembranças em datas marcantes das nossas vidas, mas, sim, a uma inexplicável falta de habilidade. As prendas, no fundo, e em especial as de Natal e Páscoa, são normalmente sinais dos nossos afetos e do nosso amor para quantos nos rodeiam. Por isso, até foi com satisfação que acompanhei, também com a minha opinião, as últimas aquisições para a noite de consoada.

MARIA DO CÉU

Com os anos a pesarem, a varredora arrasta-se no seu labor mecanizado na busca das folhas caídas do arvoredo. Empregada da empresa encarregada do asseio citadino, vejo-a com frequência da esplanada do bar onde matinalmente costumo saborear o café de mistura com o ar puro que o parque me oferece. A mulher deambula de um lado para o outro indiferente aos olhares de quem está ou passa. Baixa-se com dificuldade, puxa com as poucas forças que lhe restam o saco preto de plástico semicheio de lixo, ergue-o a custo para o despejar no carro de mão e volta à cata de mais folhas, mas também de papéis atirados para o chão por gente graúda e miúda que corre apressada, sem cuidar de saber das recomendações que periodicamente se badalam para haver respeito pela limpeza do ambiente, que é casa de todos.
De quando em vez, o capataz lá aparece para dar as suas ordens: — Olhe ali; quero isto limpinho como um brinco; não quero queixas de quem paga!
Maria do Céu, assim se chama a mulher que me prende a atenção e os sentimentos nascidos à sombra de quem sofre e luta, obedece apressada sem mostrar enfado, num gesto mecânico de quem está habituada a cumprir ordens. 

O MEU SÓTÃO

Máquina de costura antiga.  Em baixo um ninho da gata 

Um sótão que se preze é sempre uma preciosa inspiração de estórias. O meu não foge à regra. Não tem sido meu hábito subir, o que não acontece com a minha Lita, que tem lá a morar as nossas gatas, mãe e filha, a Bijú e a Guti, que trata como se pessoas da família fossem. Alimentação sadia e adequada, higiene diária e companhia exigida por elas. Se a Lita demora, elas encarregam-se de a avisar.
No sótão há de tudo: Livros e revistas considerados pouco necessários, cassetes e CD ultrapassados pelas novas tecnologias, os ninhos das gatas para diversos gostos e temperaturas, um rádio com uns 60 anos, uma TV à espera de quem a considere um mono sem qualquer préstimo, cadeiras, sofá, um lavatório da avó da Lita, uma máquina de costura antiga de fazer ponto ajour, fotografias de filhos meninos e adolescentes, entre mais umas coisas, que não conseguimos despachar para o lixo, um emblema do Sporting, alto-relevo, que resiste a umas seis décadas, oferecido por um amigo que hoje me trouxe gratas recordações para contar um dia destes.
Tendo tantos motivos para visitar frequentemente o meu sótão, por que razão o ignorava? Ia a correr e a correr descia sem olhar para o que por ali está com tantas estórias para tão interessantes evocações.
Mas agora está a ser diferente: Convenci-me que tenho de fazer exercício físico e a bicicleta, que há tempos foi atirada também para o sótão por falta de uso, voltou à vida. Graças à minha decisão, claro.

A BEATA

Um sol radioso entra pela janela do meu quarto em dia de folga. Dias antes, em pleno outono, um frio cortante reclamava agasalhos da estação fria. Era então altura de saborear a benesse da natureza. Sair de casa, caminhar sem destino pelas ruas, olhar a vida sem pressas, mirar gente que corre para cumprir horários, deixar voar a imaginação. 
Caminhar não é só um ritual pedido por um coração que se quer saudável. É sentir o gosto pela vida, beber o ar fresco que dilata pulmões, ver pessoas que se cruzam caladas ou com acenos de simpatia, apreciar a árvore presa à terra que lhe dá o viço e a atira para o alto. É olhar com ternura a criança que treina os primeiros passos na relva do jardim, com a mãe embevecida a ampará-la com o carinho que só ela pode dar. 
Caminhar é ainda encontrarmo-nos a nós próprios em maré de reflexão, é rezar no meio da agitação, do barulho ensurdecedor de carros que circulam com gente agitada. É querer um mundo mais são, mais terno, mais justo, mais fraterno. É desejar ser diferente dentro do que somos. 

A CAMA NOVA


Numa tarde quente, quase no final do ano letivo, o Zé Carlos convidou-me para ir até sua casa. As aulas tinham terminado há pouco, com o professor algo perturbado, contra o que era costume, pela falta de dedicação ao estudo da malta da quarta classe. Falta de estudo não seria assim tanto, mas a verdade é que as respostas certas às perguntas do mestre sobre Geografia de Portugal não saíam, naquele dia, como ele decerto gostaria.
A exigência de saber de cor as linhas férreas e de conhecer, de forma papagueada, os rios do continente, das ilhas e colónias, entre outros saberes alusivos aos territórios pátrios, que na altura se estendiam pelos quatro cantos do mundo, como apregoavam os políticos, deixava os alunos um pouco baralhados. Por vezes, ficavam bloqueados, com a boca incapaz de dizer coisa com coisa. O cérebro como que adormecia, talvez cansado, quando o professor ficava zangado. Na sua ótica, havia alunos que não estudavam o suficiente, de forma a fazerem boa figura nos exames finais. Mestre que se prezasse queria que os seus discípulos soubessem tudo o que lhes ensinava, mesmo para além dos programas.

O AMÉRICO


De sorriso largo a emoldurar-lhe o rosto gasto pelos anos e cansado de tanto trabalho e canseiras, de chapéu a bailar-lhe nas mãos calejadas pela luta do dia-a-dia, de gravata garrida sobre a camisa branca, de sapatos polidos e fato completo, vinha desejar-me bom Natal, tantos anos depois de nos termos conhecido. Os anos passam, mas as amizades, nem sempre manifestadas por tantos motivos, perduram. Era o caso. O Américo tinha saudades de alguns momentos vividos e sentidos em comum. Vinha da estranja, para onde fora em hora de mudar de vida. Era a terceira tentativa, depois de ter desistido da mina que lhe roubou a saúde e nunca lhe matou a fome. 
Quando o conheci, tinha trinta e poucos anos, filhos seguidinhos, pele enrugada e olhos encovados pela escuridão do poço, parecia na casa dos cinquenta. 
— Tenho cara disso, mas estou muito longe. E olhe, também é por causa disso que quero fugir da mina. 
Trabalhava horas a fio, em condições sub-humanas, com o pó negro do carvão a corroer-lhe os pulmões. Mal alimentado, como sina de todos os mais pobres, sentia a vida a escapar-lhe a olhos vistos. E a mulher e os filhos? Ela não podia trabalhar fora de casa. Assim lho pediam as crianças, todas a precisarem dos cuidados maternos. 
— Cheguei a apanhar fruta dos quintais alheios para matar a maldita fome que me atormentava — disse ele. E acrescentou: 

13 DE MAIO PELA RÁDIO




Teria os meus seis anos quando vi e ouvi, pela primeira vez, um rádio. Na altura chamavam-lhe telefonia. Foi na casa do tio João Catraio. Num dia 13 de Maio, para ouvir as cerimónias de Fátima.
Mulheres e filhos sentados no chão, numa sala onde a telefonia era rainha, ali se ouvia o que decorria no Santuário de Fátima, com a missa celebrada em latim. Um padre fazia os comentários e um locutor, como então se dizia, dava explicações do que estava a acontecer. O tio João, sentado ao lado do rádio, de quando em vez acertava a sintonia. Pelos vistos, as ondas sonoras desviavam-se do aparelho e era preciso estar atento, para não se perder pitada do que lá longe se celebrava. 
Na sala, ao lado das pessoas sentadas no chão, estavam a mulher Carolina e as filhas, Maria e Clementina (gémeas), estas mais atentas ao que se passava e à espera de quem viesse para ouvir a transmissão daquele santuário.

Egas Moniz na estação do Porto

  Quando vou ao Porto, a capital do Norte, lembro-me com frequência dos painéis que decoram a sala de entrada da Estação Ferroviária. Nunca ...